Eu não sou religioso. Melhor: não sigo nenhuma religião institucional. Acredito no mistério. Acho que é petulante reduzir toda a realidade apenas àquilo a que conseguimos racionalizar. Penso que existe o imensurável, o não verbalizável, o contato com algo maior que nós e que, na experiência, traz significado.
Mas sempre tive dificuldade com manuais. Quando eu brincava de lego, só quando eu tinha acabado de ganhar o kit eu montava o que o manual sugeria, ainda assim pensando no que mais eu poderia fazer com aquelas peças e de que maneira elas poderiam combinar com as tantas outras que eu já tinha. Até com as fantasias, misturava a camisa do Capitão América, com a calça dos Flashman, a capa da Mulher Maravilha e a bota de borracha de chuva para fazer meu próprio super-herói.
Acho que, em alguma medida, levo isso para a vida. Questiono os modelos, todos eles, ainda que termine por escolher segui-los. Não conseguiria viver de outra forma e se não estou sempre feliz (alguém está?), estou ao menos satisfeito com as minhas escolhas. São sinceras, são completamente minhas.
Só que o amadurecimento vai ensinando que “cada escolha é uma renúncia”, e quanto mais o tempo passa, mais vou entendendo o tamanho e peso de cada renúncia e, por tabela, o tamanho e o peso de cada escolha. Escolhas são, muitas vezes, difíceis e principalmente pesadas.
Esse é o momento que eu sinto falta de um manual. Aí que eu tenho uma certa inveja de quem decidiu seguir algum modelo de vida à risca, ou que tem um livro em casa com todas as respostas. Embora eu viva pelo princípio de que minha realidade é filha do acaso com as minhas escolhas, às vezes eu queria poder abrir mão de pensar. Queria ouvir uma instrução de uma autoridade inquestionável e simplesmente seguir.
A série The Man Who Fell to Earth, da Paramount, tem mexido comigo de uma maneira especial. Sem dar muitos spoilers, a trama é sobre um alienígena que… Bom… É um homem que caiu na terra. A série é tão rica e complexa que certamente ainda falarei bastante dela em outros textos. Neste momento quero destacar um ponto percebido pelo alienígena sobre um fator que compõe a humanidade e que o surpreendeu: nós somos capazes de sentir pelos outros.
Na verdade é mais do que isso: muitas vezes nos NÃO somos capazes de não sentir. Nossa emoções, nossos sentimentos, não são só sobre nós mesmos, sobre o que nós estamos vivendo na pele. São sobre as pessoas que amamos, as pessoas que odiamos e, o mais importante aqui, as histórias que ouvimos. Conseguimos emular a sensação de passar por uma experiência, sem que tenhamos de fato que passar por ela.
Isso é bom? É fato que isso atrapalha a objetividade. Não é pragmático, nossas emoções nos tornam erráticos. O peso das escolhas fica maior quando entram na conta as emoções, nossas e dos outros, quando pensamos nas histórias que serão contadas a partir das nossas escolhas. Seremos vilões? A série discute isso, a espécie do alienígena não é assim, não é torturada pelo peso das escolhas. São objetivos, diretos, práticos.
Por outro lado, o que seria de nós sem nossas histórias? E o que seriam das histórias se não fôssemos empáticos? As escolhas tem um peso, e esse peso pode ser um fardo, mas ajuda ver que alguém já passou por isso. Ajuda conhecer como pessoas agiram em situações parecidas e, principalmente, ajuda ter um vislumbre do sentimento que determinada escolha pode gerar.
É nas histórias que aprendi a encontrar orientação. Muitas vezes encontro respostas. Quando tenho sorte, encontro mais perguntas. Foi com o Poderoso Chefão que aprendi que o caminho para o mal pode ser insidioso e totalmente justificável. Foi com Amelie Polain que aprendi que muitas vezes nossos planos nos impedem de viver. Foi com Pequena Miss Sunshine que eu aprendi que o que importa é o caminho e com quem se percorre, muito mais do que o destino. Isso para ficar só no cinema.
Essas e incontáveis outras histórias, esses aprendizados, vão formando um mosaico dentro de mim. É a esse mosaico que eu recorro quando me deparo com uma escolha difícil ou até quando a vida parece perder o sentido. Sei que são fatos fictícios, mas, a resposta estava em mim, não estava? O que importa, aqui, é a sensação que as histórias causam, as lições que eu levo. O que eu passo a ter, no que eu fui transformado depois de passar por essas experiências?
Não sou religioso. Nunca me dei bem com manuais nem com modelos rígidos. Mas tenho meus refúgios, minhas fontes de conhecimento. Coleciono manuais, experimento os modelos, guardo as peças que me servem. Experimento como elas funcionam com tantas outras que já tenho.
Não é fácil, mas é sincero. E é completamente meu.
Muito bom o texto . Bom ver vc todo nele ! Grata por partilhar .
Que texto bonito. Me identifico. Ler e reler livros, voltar a séries e filmes favoritos, me traz esse tipo de "orientação" e conforto.