Suponha que você tem um ingresso para assistir Muito Barulho por Nada, do maior dramaturgo da história, o maior escritor da língua inglesa, o gênio, o mestre, William Shakespeare. Como você vai vestido? Você toma um banho antes? Passa um perfume? Que tipo de roupa coloca?
Chegando no teatro, como é o ambiente? Como são as outras pessoas? Quantas são? Menos de mil? Qual é a faixa etária majoritária? A etnia? Como estão vestidas? No saguão, elas falam alto ou sussurram? E dentro do auditório? Elas comem? Bebem? Você levanta durante a peça?
Sobre a peça, qual é a expectativa? Morrer de rir, se divertir horrores? Beber palavras de sabedoria que você vai carregar pra vida? Aguentar duas horas de tédio pra mostrar pra pessoa do seu encontro que você tem cultura? Aliás, você vai sozinha? Quem você leva? A pessoa precisa gostar de teatro ou pode nunca ter ido? É a mesma pessoa que você levaria para um show de stand-up? Você levaria seu sobrinho de vinte e poucos anos que estuda ADM, passa o dia no celular e toda sexta vai num rolê sertanejo?
Estou propondo uma ida imaginária ao teatro, mas se você já foi, tenho certeza que conseguiu responder a todas essas perguntas. Dificilmente você imaginou uma cena caótica, com barulho, milhares de pessoas comendo e bebendo, de muitas classes sociais diferentes, de muitas idades diferentes. Acho pouco provável que você tenha pintado um quadro de um programa popular. Ir ao teatro, principalmente para ver Shakespeare, é um rolê erudito. Não é popular.
Mas há uns quatrocentos anos, quando Muito Barulho Por Nada estava sendo montada pela primeira vez, ir ao teatro era um passeio nada sofisticado. O Globe, onde a peça era encenada, recebia até três mil pessoas, de diferentes classes sociais. Os assentos tinham preços variados e o bilhete mais barato era de pista, que te fazia ficar em pé. Não tinha pista premium. Os espetáculos duravam horas e horas, mas não era necessário ficar parado prestando atenção o tempo todo. As pessoas comiam e bebiam na plateia, inclusive cerveja. Saíam, voltavam, riam alto, vaiavam, conversavam, tudo enquanto no palco o Benedito e a Beatriz trocavam farpas para esconder o amor que sentiam um pelo outro. Ambos interpretados por homens, claro.
Assistir William Shakespeare era o passeio popular da época. Shakespeare era pop.
De lá pra cá isso mudou. Ele deixou de ser pop, e o pop deixou de ser Shakespeare. Pop hoje é o seu sobrinho de vinte anos que estuda adm e vai no rolê sertanejo. Pop é Ludmilla e Anitta. Pop é Star Wars e a Marvel. Pop é Taylor Swift, pop é Beyoncé. Pop é, obviamente, K-Pop. BTS. Alguns dizem que o papa é pop, mas tenho minhas dúvidas.
O pop de hoje arrasta as massas, mas é também vulgar, simplório, ultraprocessado. Ele existe com o objetivo de atrair essas multidões e, portanto, é esvaziado de significado. Recorrem-se a fórmulas de sucesso, que parecem cada vez mais reduzidas apenas ao imediatismo do que funciona para aquele momento. É descartável, não sobreviverá ao teste dos tempos. É entretenimento e não arte.
Só que se o pop não é arte, o que é arte?
Esta questão anda próxima de perguntas como “qual o sentido da vida?”. Não existe uma resposta definitiva, e quem a dá provavelmente está sendo dogmático. É uma pergunta perigosa, que já gerou animosidades e alimentou guerras terríveis. Uma discussão infindável que pode até me render um texto exclusivo um dia, mas que não será esgotada.
Eu aprendi na faculdade que desde o surgimento da arte moderna, que questionava justamente uma forma rígida de definir arte, arte pode ser qualquer coisa. Atenção: não estou falando que arte é qualquer coisa, estou falando que qualquer coisa pode se tornar arte. E o que faz algo ser arte? Intenção artística. Precisa haver um autor, que intencionalmente crie esta arte. É vago e abrangente, e de propósito.
Pessoalmente, entendo que por mais difícil que seja conceituar arte, é possível falar sobre seu propósito. Arte me parece ser a expressão do indizível. Nossa civilização se organizou em volta da construção de conhecimento racional. Nós temos algo chamado linguagem verbal, que tem a pretensão de traduzir toda a realidade ao nosso redor. Tudo pode ser colocado em palavras. Só que não.
Tenho certeza que quem quer que esteja lendo já teve algumas experiências intraduzíveis, de difícil expressão. A linguagem é um funil e, por mais que seja a melhor maneira que encontramos para nos entendermos e entendermos nosso entorno, é pobre diante de toda a existência.
É aí que entra a arte, ela toca neste ponto que está além do racional, além do verbal, e é capaz de transmitir emoções. Mesmo em um bom livro, sua maior qualidade é a articulação eficiente do texto ou a maneira como ele te toca?
E o pop? Não toca? Não mexe com as emoções? Se sim, o que faz com que se pense que ele é invariavelmente vazio?
Primeiro, precisamos falar sobre a juventude. É principalmente ela que produz e alimenta o pop. Quando pensamos sobre a tristeza que é a proliferação dos produtos simplórios, estamos pensando nas gerações atuais. Frequentemente ouvimos que esta geração está acabando com [coloque o que você quiser aqui].
“Não vejo esperança para o futuro do nosso povo se depender da juventude frívola de hoje, pois certamente todos os jovens são indizivelmente irresponsáveis. Quando eu era jovem, éramos ensinados a ser discretos e respeitosos com os mais velhos, mas a juventude de hoje é excessivamente sabichona, e não tolera restrições.”
Descreve perfeitamente a juventude vazia de hoje, né? Só que essa citação é do Hesídodo, do século VIII antes de cristo. Quando eu ouço alguém reclamar da geração atual, ou de como os tempos estão, eu lembro que falar mal da juventude é um esporte de quase três mil anos. No mínimo. Sim, a juventude é desrespeitosa e pouco afeita a restrições e convenções. Só que todas as juventudes foram assim.
É próprio da juventude questionar os valores das gerações anteriores. E esses valores não são também estéticos? O modernismo não surgiu no ranço do romantismo? Quantas pessoas, ao lerem Memórias póstumas de Brás Cubas, na época, não acharam que o Machado havia perdido toda a sua qualidade?
"Em suma, a nossa impressão final é a seguinte: a obra do sr. Machado de Assis é deficiente, senão falsa, no fundo, porque não enfrenta com o verdadeiro problema que se propôs a resolver e só filosofou sobre caracteres de uma vulgaridade perfeita; é deficiente na forma, porque não há nitidez, não há desenho, mas bosquejos, não há colorido, mas pinceladas ao acaso." (crítica de 1881)
E Memórias póstumas é pop? Vejamos, foi lançado em fascículos, como um folhetim. Neste ponto, era a versão vigente da novela das nove, pensada para atrair o expectador. Além disso, é uma obra com elementos claros de entretenimento: capítulos curtos para não cansar, humor constante, ganchos e mais ganchos, e romance. Acho seguro afirmar que o Machado escreveu este livro para ser muito lido, para ser devorado, pensando em seu público. E o que é o pop, senão algo feito para o público?
Importante: aqui, o conceito que estou usando é de “cultura pop”, ou cultura de massa, algo que movimenta grandes multidões, feito com esse objetivo. Existe o termo “cultura popular”, que é sobre cultura não erudita, que vem do povo e não das elites. É comum que, com o passar do tempo, a cultura popular se torne pop. Mas estou falando daquilo que hoje é chamado de “indústria cultural”. O objetivo é conquistar um grande público, mexer com o mercado.
É um objetivo perigoso. O risco do esvaziamento é real. Quando o objetivo passa a ser mercadológico, a obra é também um produto. E, como produto, pode ser esvaziada de significado. Quando passa-se a produzir baseado no que “funciona”, a tendência é cair em fórmulas, repetir e esgotar.
A música pop, por exemplo, tem uma estrutura bastante definida. Existe até um padrão de batida que frequentemente se repete. Não é surpreendente que inteligências artificiais reproduzam tão bem músicas pop, estamos automatizando o processo há décadas.
Mas será que a ideia de usar uma fórmula por si só é realmente um problema? Existem padrões também nas peças do Shakespeare: vingança, romances proibidos, tramas palacianas. Aliás, ele é famoso pelos seus sonetos que, veja só, é uma fórmula de poesia, inclusive bastante rígida. E quanto não dá para criar dentro de quatorze versos rimados, duas estrofes de quatro e duas de três? Quanto Shakespeare ou Camões não fizeram dentro desta fórmula?
De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.
Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.
E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.
(“Soneto da Fidelidade”, esse é do Vinícius)
Mas se o problema do pop não seria a fórmula, então qual seria?
É hora de confessar: eu admiro o pop. E tenho minhas dúvidas de que exista um problema, pra começo de conversa. Também não estou falando que não tem. Estou falando que tenho minhas dúvidas.
Se há um problema, provavelmente é a tendência à superficialidade, à falta de profundidade. Usar uma fórmula não é grave se ela é explorada criativamente, com algo a se falar, como com um soneto. Mas quando a fórmula é soberana e seu estofo é apenas espuma, aí talvez aconteça aquilo que mais incomoda quem desdenha o pop: nasce um produto vazio.
Há anos penso nessa dicotomia entre a “boa arte” e o “produto vazio”. Há quem separe um do outro, mas eu vejo como um espectro.
Vamos considerar que essa linha é uma escala, uma medida. No extremo do ponto A, temos a arte pura e no outro extremo, o E, o entretenimento puro.
Se nesta minha linha de raciocínio o que define o entretenimento é o foco na audiência, a procura por “funcionar” e atingir multidões, o entretenimento “puro” seria um produto criado apenas pensando no público. Neste caso extremo, o autor, suas vivências, suas verdades mais íntimas, seriam irrelevantes. Só seria importante a observação de outras obras e como o público tende a reagir a elas. O desafio então seria juntar o máximo de elementos de sucesso em um produto organizado. É a anulação do autor e a soberania do público.
Assim, no outro extremo teríamos o exato oposto. A “arte pura” seria uma obra completamente focada no autor. Neste caso, o artista não está pensando nem um pouco em como o que ele fez será recebido. Ele compõe a obra (uma música, um filme, um texto) apenas para se expressar. É a exposição máxima do autor, que busca algo no seu íntimo e transforma em algo externo. Seria a anulação do público e a soberania do autor.
Penso que é fácil perceber que esses produtos “puros” nos limites do espectro não existem. Ou existem mas são insuportáveis, dos dois lados. O entretenimento puro seria sem alma, não ressoaria e não tocaria em ninguém. Provavelmente não faria nem sucesso. E a arte pura seria hermética, só interessaria ao autor e do mesmo jeito ninguém se relacionaria.
Os diversos produtos culturais então seriam posicionados ao longo dessa escala. Star Wars estaria à direita do centro. Qualquer filme do David Lynch estaria um tanto afastado, à esquerda. Pensar nessa relação entre arte e entretenimento como uma gradação e não como classificações absolutas me levou a algumas reflexões.
A primeira é que tudo o que faz muito sucesso, estrondoso, tem também algo de arte. Se a arte é a expressão do indizível e da emoção, algo que não emociona não mexeria com tanta gente. Se mexe é porque emociona e se emociona é porque é arte em algum nível.
Novamente, nenhum produto pop de sucesso está no extremo do espectro. Star Wars, além de um conto sobre amizade, é sobre resistência, sobre desafiar o destino, um caminho traçado. Guardiões da Galáxia me faz pensar sobre o que de fato significa família. Os super-heróis em geral me ensinam que, se eu tenho algo que me deixa em vantagem, é minha responsabilidade fazer um uso consciente dessa vantagem, ajudar os outros. Esses produtos não apenas me falam isso, eles me fazem sentir isso.
E, do outro lado, toda boa arte precisa também comunicar em algum nível. De pouco serve a expressão perfeita do indizível se não toca ninguém e se torna inacessível. Desprezo não é algo agradável de sentir e suspeito que o público sente quando o artista o despreza.
Só que, via de regra, atinge mais gente aquilo que é mais simples, menos sofisticado. Não que as pessoas não sejam sofisticadas, é que o ponto em comum entre elas não costuma ser. No cursinho eu tive um professor que dizia que o QI coletivo de uma multidão, como a de um estádio, não é a média entre os quocientes intelectuais dos indivíduos, mas o menor deles, que se espalha para os outros.
Mas se uma boa reflexão demanda profundidade e sofisticação, é possível conciliar isso com a simplicidade necessária para atingir muita gente? É uma equação complicada e cada artista vai encontrar seu ponto de equilíbrio entre o que quer fazer e como quer ser percebido, onde quer se posicionar na régua.
Na minha opinião, os mais geniais conseguem ficar no centro.
Entre artistas que atingiram o ponto G, acho o caso dos Beatles bastante ilustrativo. No começo da carreira eles eram o protótipo da boy band, o equivalente da época do BTS de hoje — ou de poucos anos atrás, não dou conta de acompanhar. Mas o quarteto entrou para a história como uma das mais importantes bandas de todos os tempos, que revolucionou a música de forma definitiva. Há uma noção de que essa aparente contradição é possível porque existem dois momentos distintos na trajetória deles, com uma divisória ali por 1966, quando decidiram que não fariam mais shows.
A beatlemania estava no auge e não havia preparo para receber a novidade que eram as multidões ensandecidas. Por conta dos gritos das fãs, os músicos não conseguiam se ouvir quando se apresentavam e a situação se tornara insustentável. Então eles foram para o estúdio e começaram a produzir músicas mais autorais, explorando as possibilidades da tecnologia, sem a preocupação de performá-las ao vivo. Há quem diga que foi a partir do fim da beatlemania que eles se tornaram verdadeiros artistas, pessoas visionárias, gênios.
Para mim, eles são gênios por causa da beatlemania. Claro que Eleanor Rigby, Blackbird, While My Guitar Gently Weeps são obras primas, o pináculo da expressão musical terrestre (sim, sou muito fã). Mas acho She Loves You igualmente genial. Ainda que por outros motivos. Vamos falar sobre esta música.
She Loves You é indiscutivelmente pop. Conta uma história de amor, com uma duração curta, que cabe em qualquer programação de rádio. Tem um refrão grudento, repetido à exaustão, com palavras fáceis para cantar junto, além das harmonizações vocais que eram moda na época e que os Beatles faziam com perfeição. Meu filho se encantou aos dois anos e, antes de saber falar, já chamava a música de “iê iê”. Vi uma entrevista do Paul McCartney em que ele conta que o pai preferia que não cantassem “yeah” como os “americanos” e sugeria trocar por “yes, she does”. Ou seja, eles faziam questão de falar como as músicas que escutavam, talvez procurando o que “funcionasse”.
Para o jovem médio do início dos anos sessenta, o que que eu citei era o necessário para cativar e fazer da música um hit. Um dos maiores de uma banda que parecia aperfeiçoar a capacidade de produzir sucessos. Mas She Loves You não é — apenas — um amontoado bem organizado de clichês, é também revolucionária.
Apesar do lugar-comum do rapaz apaixonado pela garota, nesta música nenhum deles é a pessoa que canta. A música se chama Ela Ama Você, não tem “Eu”. Não é sobre meu amor perdido ou impossível, é sobre você, quem quer que seja você. Te convida a acordar pro amor, pro seu amor, pra parar de merdinha e aceitar que ela te ama, e te lembra que você deveria ser grato. Existe o casal, mas a música é cantada por um terceiro elemento. Parece besta hoje, mas na época em que ela foi lançada, entre as muitas músicas de amor que existiam, isso não era comum. É a camada além da superfície.
Além disso, será que a segunda fase da banda seria ouvida com tanto entusiasmo e apuro se eles não tivessem cativado um público antes? Com letras simples e melodias contagiantes? É claro que A Day In The Life é brilhante mas meu filho dificilmente vai descobrir antes dos quinze anos. Só que Beatles não é só isso, e She Loves You já o pegou com menos de dois. E Yellow Submarine, claro.
Assim, olhando para a carreira do quarteto, é possível aplicar aquele conceito batido da cebola. É uma carreira em camadas. Existe o acessível, de fácil consumo, como She Loves You e Hey Jude e existe o profundo e sofisticado como A Day In The Life e Within You Without You, e um pode levar ao outro. Além de que, claro, She Loves You e Hey Jude também tem suas próprias camadas.
O ponto que estou tentando construir aqui é que é valioso acessar o público. A arte, acredito, só se completa com o observador. E é importante cativar esse observador, trazer ele para a obra. E isso é responsabilidade do autor.
Ao mesmo tempo, entendo que essa busca pode comprometer a visão da obra, o que o artista quer expressar. Entendo que a boa arte é uma expressão pujante de algo íntimo ao artista, e muitas vezes essa expressão sai sofisticada, complexa, pouco acessível, e que pode ser um pecado reduzi-la. Respeito essa ideia.
Só que acho complicado, do lugar de público, pressupor que o pop também não tenha algumas dessas características. Acho difícil julgar sem perspectiva histórica. Estamos sempre inseridos em tendências artísticas e culturais vigentes, nosso olhar não é livre de viés, por mais que o exercitemos. Não é fácil nos despir de preconceitos.
Talvez os filmes da Marvel virem um borrão na minha mente daqui a dez ou vinte anos, talvez eu os esqueça todos e considere que eles tiveram pouco impacto na minha vida ou na maneira como eu vejo o mundo. Talvez a profusão de músicas, a aparente procura por um novo sucesso, um amor instantâneo ao hit do momento, venha junto com uma vida curta na mente e no coração das pessoas que só estão buscando uma distração.
Ou talvez não.
Só o teste do tempo me parece definitivo. Penso que o que perdura, diante das mudanças e dos modismos, o faz porque tem integridade, tem estofo. Noel Rosa era pop. Machado era pop. Os Beatles, Caetano, Frank Capra, Steven Spielberg, as Wachowski, são figuras que permaneceram e permanecem, causando epifanias em seu público, que agora as procura não pelo sucesso do momento, mas porque estão consolidadas.
Outro exemplo interessante de pop que se revelou erudito com os anos é Orgulho e preconceito, da Jane Austen. É uma leitura deliciosa, bem humorada, sagaz, magnética. É também a proto comédia romântica. A sensação que eu tive, ao ler, é que quase todas as comédias românticas cinematográficas de um jeito ou de outro bebem de Orgulho e preconceito. O livro foi um sucesso instantâneo, e tem características pop: romance, humor, uma trama relativamente simples que pode ser apreciada apenas na superfície. A própria autora, nas suas memórias, desdenha ao dizer que
“É um trabalho muitlo leve, e luminoso, e cintilante”.
Mas, me desculpe Jane, não é só isso. É estúpido que tenha me surpreendido, mas o livro realmente é um pequeno tratado sobre… Orgulho e preconceito. O tema central não foge do foco da autora em nenhum momento. Em uma camada só um pouquinho mais profunda, o livro coloca questões de classe de maneira bastante clara, muitos anos antes de isso ser um tema central para as novas ideologias que surgiram do meio pro fim do século XIX. É um livro centrado na perspectiva feminina e através das peculiaridades da protagonista — Elizabeth é rebelde e não está procurando um marido como deveria — está o tempo todo discutindo sobre como a única maneira de uma mulher ascender naquela sociedade é através do casamento.
Mas para mim, a genialidade está em uma camada ainda mais profunda, quando o livro toca nas verdades de um contexto maior. Mr. Darcy, o “mocinho”, objeto de amor e ódio da Elizabeth, se sente chocado consigo mesmo por estar interessado em uma mulher pertencente a uma família que ele considera vulgar. Assim, o livro me faz pensar: por que o ser humano tem preconceito? É um sentimento que faz sentido? É possível dizer que algumas pessoas são melhores que outras? E o orgulho? É algo útil ou algo a ser vencido?
Orgulho e Preconceito foi criado como um produto pop e o tempo mostrou que era muito mais. Hoje, como qualquer livro do século XIX, é tido pelo senso comum como algo sofisticado, até inacessível. O pop é efêmero, a arte não. O verniz do pop se esvai com os anos, e é comum que só então se entenda o valor artístico da obra.
Só que não deixa de ser uma perda. Se este livro parecesse mais acessível, será que não haveria mais gente pensando sobre seus orgulhos e seus preconceitos?
Tem um filme “besta”, uma comédia romântica recente, no melhor estilo das comédias românticas que eu cresci assistindo no final dos anos noventa e começo dos dois mil. Todos menos você. É sobre duas pessoas que, após um encontro de amor a primeira vista, rapidamente se desentendem, e acabam se reencontrando meses depois quando por coincidência a irmã dela vai casar com a melhor amiga dele. Climão. E o pior: o casamento será em outro país e todos os convidados próximos devem passar uns dias na mesma casa para a festa.
A comédia está armada. Os dois protagonistas se estranham enquanto os outros presentes acham uma boa ideia manipulá-los para que se (re)apaixonem, em nome da paz no evento. Não quero contar o final, mas acho que não preciso, né? É um filme de sucesso de público e crítica, sem grandes pretensões. A história é leve, suficientemente simples, os atores são bonitos, os queridinhos do momento. Um filme fácil de gostar. Considerando como ele se parece com todas essas comédias românticas de vinte anos atrás, dá pra dizer que é um filme que se ampara em algum tipo de fórmula. Ou seja, é um filme pop.
Agora, o que eu acho mais interessante: qual o nome dos personagens que formam o casal principal? Beatrice e Ben. Como Beatriz e Benedito. Todos Menos Você é uma releitura atualizada de Muito barulho por nada. Assistir ao filme sabendo disso, ao menos pra mim, deixou a experiência ainda mais divertida. Brinca-se com Shakespeare no filme, com os anacronismos do texto original que precisaram ser suprimidos para o jeito contemporâneo de contar histórias. Pela primeira vez notei como o autor inglês era viciado no recurso de “pessoas escondidas ouvindo conversa alheia”, ou “pessoas conversando dissimuladamente para que pessoas escondidas ouçam suas conversas”.
Não estou falando sobre este filme para provar que Shakespeare ainda pode ser pop. Embora, sem ter a intenção, acho que acabei fazendo isso. Estou citando Todos Menos Você porque a roupagem contemporânea que colocaram na peça do século XVI permitiu que muito mais gente, hoje, pudesse curtir sua arte.
Eu amo Shakespeare. Acho ele particularmente sagaz nas comédias e frequentemente me pego rindo alto lendo alguma piada em uma peça dele. Não estou dizendo que consumo o dramaturgo como eu consumo meus gibis de super-herói. O texto é complexo e os anacronismos precisam ser superados, mas ainda assim, é um prazer de ler. Poder dividir este prazer com qualquer pessoa disposta a assistir uma comédia romântica inconsequente é um grande presente.
Pode ser algo particular, mas não amo Shakespeare pela sonoridade ou pela métrica, amo pelo que ele quer falar. Amo pelo olhar que ele tem para a humanidade, para as relações, para os nossos sentimentos mais íntimos. E arrisco a dizer que isso está mantido em Todos menos você.
Entendo o preconceito com o pop. Acho o conceito de “massa” interessante porque ele parece tratar o coletivo como um só indivíduo. “A vontade da massa”, “funciona para a massa”, como se fosse um só corpo, uma só mente. De fato, um produto pensado em agradar este único corpo, e essa única mente, que existe apenas nas intersecções que contemplam milhões de pessoas, precisa ter alguma simplicidade, não pode parecer muito complexo. Porque o complexo é direcionado, exclusivo.
Só que ao mesmo tempo entendo que o alcance da popularidade também é uma competência e também tem seu próprio mérito. No mínimo denota que o autor ou autores estão cientes dos movimentos do seu tempo, e que têm a habilidade encontrar esse lugar onde conseguem se comunicar com multidões.
Talvez meu ponto seja que a obra ter essa habilidade, ser capaz de falar com multidões, não exclui, automaticamente, que tenha também algo artisticamente valioso. São ingredientes diferentes, que podem ser adicionados em quantidades diferentes, em obras diferentes.
E quando entra na conta a questão geracional, fica ainda mais difícil saber o que é “vazio” e o que é só diferente, feito para um público do qual não faço parte. Até suspeito que existam produtos pops praticamente vazios, mas na minha perspectiva são todos “cebolas em potencial”.
Penso que há um tanto de orgulho e um tanto de preconceito em julgar o pop como algo com muito barulho por causa de nada.
Desculpa o trocadilho infame, o humor do meu texto é uma tentativa de deixá-lo mais pop.
M I C R O C O N T O
Em seu terceiro álbum a dupla 5u373n e J04n4 (lê-se Suélen e Joana) decidiu voltar às suas raízes no campo. Se o último registro, “hushing”, era sobre quão frenética era a cidade, e a vertigem de se estar sempre acelerada, com prazos impossíveis até para seres sintéticos como elas, o novo disco, “shushing” é sobre ter tempo para parar. “Um álbum não existiria sem o outro. Em hushing estávamos gritando, oprimidas pelo barulho e pelas luzes, e percebemos que na verdade era um grito por socorro”, conta 5u373n. “Nós queríamos era fugir”, completa J04n4. O disco é acústico, ou tão acústico quanto possível. “Somos nós com violões e uma percussão, mas nossas vozes, obviamente, não são acústicas” brinca J04n4, famosa por mimetizar com perfeição mais de cem timbres diferentes. Shushing foi gravado no mesmo galpão da fábrica onde ambas foram montadas, e a razão não é apenas sentimental. “(O galpão) tinha uma acústica perfeita, a gente sempre soube, foi lá que começamos a cantar”. O álbum é recheado de referências à vida que a dupla levava antes do sucesso na música, quando ainda eram garçonetes de um autoposto aeroviário. A primeira música de trabalho, “número de série” é sobre duas mulheres artificiais vivendo suas rotinas, mas atrás de algo que as defina, que as separe dos milhares de outros modelos iguais. “Essa sempre foi uma busca nossa, e acho que de qualquer sintético produzido em série” explica J04n4. “Quisemos voltar para cá porque notamos que o que nos faz únicas, como com qualquer vida, é nossa história”, conclui 5u373n.