Fato fictício: no dia 26 de outubro de 1985, precisamente à 1h20, Marty Mcfly, enquanto fugia de terroristas líbios, inadvertidamente atinge a velocidade de oitenta e oito milhas por hora, cruza a barreira do tempo e viaja trinta anos para o passado. Trinta não, vinte e nove anos, onze meses e vinte dias, para manter a precisão necessária a esse tipo de viagem. Pouco depois de chegar à Hill Valley dos anos cinquenta, o adolescente impede, por acidente, que a mãe e o pai se encantem um com o outro, o que gera um paradoxo temporal: se eles não namorarem, casarem e não tiverem filhos, Marty não nasce. Ao longo de uma semana, ele precisa servir de cupido para que o casal em potencial se apaixone, o que — spoiler de um filme de trinta e sete anos — ele consegue! Mas quando volta para o futuro de 1985, suas ações provocaram consequências em toda a linha temporal, e sua vida já não é mais a mesma.
É 24 de outubro de 2022, 20h43: consegui, afinal terminar o texto ontem, ficou enorme. Passei a noite entre calafrios pensando que ainda falta a tal conexão com a realidade. Qual é a reflexão para a vida que viagem no tempo pode provocar? É dia 18 de outubro, 20h15. Começo o texto. Tenho oito dias, cinco horas e seis minutos para terminá-lo. Também é dia 23, faltam só três dias para a hora de enviar e sinto que ainda estou longe de acabar. Penso que talvez tenha sido muito ambicioso em abordar esse tema. Estou melhor, mas ainda me sinto febril.
Foi De Volta Para o Futuro que despertou em mim um interesse, até hoje, insaciável: o tempo. Desde criança, se eu encontro um filme, uma série, um livro, um gibi, um tweet que envolva viagem no tempo, minha atenção é imediatamente capturada. “Viagem no tempo” é um assunto inesgotável, até porque é completamente teórico, pelo que sabemos, verdadeiramente impraticável.
Afinal, o que é o tempo? É seguro dizer que é um conceito básico, que o humano médio entende simplesmente vivendo, em termos práticos. Mas e na teoria? É tão simples elaborar?
O Viajante sem nome de A máquina do tempo de H. G. Wells — o primeiro livro a lidar literalmente com viagem no tempo — sugere que o tempo é a quarta dimensão. Um ponto não tem dimensões, é apenas uma coordenada. Uma linha tem uma dimensão, é a distância entre dois pontos. Um polígono tem duas dimensões: altura e largura e é formado por várias linhas. Um poliedro tem três: altura largura e profundidade. O Viajante propõe que um poliedro real, que existe no nosso mundo, na verdade tem quatro dimensões: altura, largura, profundidade e duração.
É uma explicação engenhosa e certamente uma das razões do sucesso do livro no começo do século XX, mas ainda completamente abstrata. Cada uma das dimensões é visível, mas a duração não. Conseguimos notar seus efeitos, mas sempre um pouco de cada vez. Tentando criar um paralelo com a terceira dimensão, seria como se fôssemos seres bidimensionais que são capazes de perceber apenas um lado de um cubo e, ainda que esse lado mude, nunca conseguimos ver o cubo todo. Me parece, por essa alegoria, que somos seres tridimensionais que têm vislumbres dessa quarta dimensão, suficientes apenas para uma compreensão reduzida dela. Por isso falar sobre tempo dá dor de cabeça, não fomos feitos para pensar quadridimensionalmente (algo que irrita muito o Doc Brown).
Ainda assim, o tempo tem uma influência direta na nossa existência. Se a história da civilização é também uma história de organização, o tempo precisou ser organizado. Não. Não o tempo, nossa compreensão de tempo. É importante entender essa distinção: o que classificamos como tempo é, principalmente, apenas nossa compreensão, profundamente limitada, dessa… Coisa. Então organizamos a Coisa. Baseando em elementos reais criamos elementos artificiais comuns a todo o mundo: horas, meses, anos, séculos…
Assim, cultivamos e alimentamos a ideia de que o tempo é algo estável, como o desenho de um rio, em cujas águas flutuamos todos juntos para um mesmo sentido, em um mesmo ritmo.
Só que ao mesmo tempo parece que sempre questionamos essa perspectiva. Várias eram as formas de oráculo da antiguidade. É como se nos perguntássemos: se lembramos tão bem do passado, por que não podemos nos lembrar do futuro? Seria essa a função dos nossos sonhos? Haveria maneiras de inverter o sentido das águas do rio?
É dia 20, tenho mais seis dias para terminar, se quero mandar no dia 26, o dia do De volta para o Futuro. Ontem tive uns calafrios durante a madrugada. Não há de ser nada, me sinto bem. É dia 25 e acabei deixando muita coisa para a última hora, tenho que correr para terminar de revisar. Estou melhor, não tive mais calafrios. Dia 22. Acordei febril, definitivamente fiquei doente. Meu plano era escrever hoje, mas tudo está mais difícil.
Existe um livro de não ficção, de um autor chamado James Gleick. O nome é Time Travel: A History (não tem tradução). O título é bem literal: o livro se propõe a contar a história das viagens no tempo na ficção, já que, até onde se sabe, é o único lugar onde elas acontecem. Além de comparar os diferentes pontos de vista, o livro é um ótimo catálogo com o material sobre o tema. Adianto: é vasto. Vou tentar me ater a alguns poucos exemplos mais populares ou que funcionam melhor para o raciocínio que estou tentando construir.
Inúmeras são as histórias antigas construídas em cima de premonições, profecias, presságios, vaticínios. Baseado em visões do futuro, Herodes mandou matar criancinhas, Laio e Jocasta deixaram o pequeno Édipo para ser devorado por Lobos e Macbeth (com a ajuda imprescindível da esposa) se corrompe em sua sanha pela coroa da Escócia.
Em comum à quase todas as situações: o conhecimento da profecia é a própria condição para que ela aconteça. Sem as bruxas, talvez Macbeth não tivesse nem considerado a possibilidade de ser rei. Se Édipo não tivesse crescido longe da família, certamente seu pai o reconheceria quando se encontram, anos mais tarde, e talvez eles não precisassem lutar até a morte. Se Maria e José não tivessem fugido… O presépio certamente seria bem diferente.
Esse conceito é chamado de paradoxo da predestinação.
Avancemos para a década de 1980. As histórias agora são contadas no cinema, as revoluções industriais dos últimos duzentos anos hiperbolizaram o papel da tecnologia nas nossas vidas. Começamos a pensar no futuro a longuíssimo prazo (algo que não se fazia antes, segundo o James Gleik). E neste imaginário, desde o livro do Wells, o futuro é consequência direta de inovações e mais inovações tecnológicas. Essas inovações ora nos empurram para o abismo, ora nos levantam acima dele. Também fazem as duas coisas ao mesmo tempo. Estamos curiosos. Queremos visitar essas realidades. Ou que elas nos visitem.
Em Exterminador do Futuro, a tecnologia permite que um robô futurista seja enviado de volta no tempo para matar Sarah Connor, futura mãe de John Connor, o líder da resistência à dominação das máquinas no futuro. Acontece que o próprio John, adulto, manda um oficial humano atrás do tal robô (que é o Schwarzenegger) para salvar sua mãe. Acontece também que esse humano se envolve com a Sarah Connor e tem um filho com ela. Quem é o filho? O próprio John Connor. Sim, o líder da resistência contra as máquinas cuja mãe o robô deveria matar, que é salva por um humano do mesmo futuro, que acaba sendo seu pai, fechando o “paradoxo da predestinação”. A forma de pensar em futuro e viagem no tempo mudou, mas o conceito da profecia autorrealizada não.
O mesmo conceito é explorado em Em Algum Lugar do Passado, um filme de viagem no tempo sem tecnologia envolvida — uma modalidade interessante, onde é mais importante a viagem do que os meios empregados para realizá-la. Nos anos setenta, um jovem recebe uma visita de uma senhora desconhecida, que lhe presenteia com um relógio. Ela fala “volte para mim” e vai embora. Isso, obviamente, perturba o rapaz. Já em 1980, em um hotel, ele é cativado por uma fotografia de uma jovem, em 1912. Para a surpresa de ninguém a jovem é a senhora que deu o relógio para ele. Ele investiga a vida dela e decide que precisa voltar no tempo, o que consegue fazer através de hipnose (?). Em 1912 ele tem um romance com a mulher e lhe dá o relógio, que ela guardaria a vida toda e entregaria para ele novamente em 1972.
É dia 25, e está ficando clara a mensagem de histórias sobre viagem no tempo. Tem a ver com um certo fatalismo, uma lição de humildade do ser humano perante a vida e a realidade. Existem sempre elementos maiores que nós em curso, e nossa perspectiva é sempre terrivelmente limitada sobre as consequências de nossas ações.
A solução narrativa do paradoxo da predestinação resolve alguns problemas de quem pensa sobre viagem no tempo. Uma pergunta comum: é possível alterar o passado? Se Marty não tivesse conseguido fazer os pais se apaixonarem, ele sumiria por não ter nascido, segundo o De volta para o Futuro. Mas se não nascesse, como poderia estragar a relação dos pais, para começo de conversa?
Existem duas teorias mais comuns nesse caso: uma é mais determinista. Se você volta para o passado, toda a sua vida já havia sido construída em cima dessa volta, como no caso do viajante em Em Algum Lugar do Passado e do líder da resistência contra as máquinas John Connor. As interferências no tempo e na história são como o destino, algo inescapável, e as consequências delas já haviam acontecido. Nesse caso, se você volta no tempo para matar o seu avô, algo vai acontecer e você não vai conseguir, porque você já não conseguiu, você já nasceu.
Outra teoria, que costuma agradar mais os cientistas, envolve universos paralelos. Você pode voltar para o passado e matar seu avô e isso não vai ter qualquer impacto na sua vida, porque vai criar uma nova linha do tempo. A linha original permanece intacta, com seu avô vivo, enquanto a nova seguiria com ele morto.
Nesse quesito a abordagem de De Volta Para o Futuro é simples, lúdica. As coisas mudam conforme elas vão acontecendo. O filme dá a entender que, se o Marty não tivesse conseguido reaproximar os pais, ele simplesmente sumiria, mas a presença dele em 1955 (até seu sumiço) continuaria fazendo parte dos eventos. Quando ele finalmente volta para o futuro de 1985, é como se ele tivesse alterado a mesma linha do tempo de onde ele havia partido, sem muita complicação.
Mas eu sempre me perguntei como ficariam as memórias do Marty depois do retorno. Depois da alteração, ele teria vivido toda uma outra vida da qual, pela surpresa que demonstra ao chegar em 1985 do 1955 alterado, ele não tem nenhuma memória. Será que nos anos seguintes os pais estranhariam que ele não se lembrasse de muitas coisas? Será que as memórias viriam aos poucos? Claro que pensar muito sobre isso vai contra toda a proposta do filme: apenas divertir.
Mas eu gosto dessas perguntas. De onde veio o relógio do cara de Em algum lugar do passado em primeiro lugar? Quem fabricou? Como começou o ciclo fechado em Exterminador do Futuro?
Dia 23. O ideal seria acabar o texto hoje e deixar amanhã e depois para as revisões. Ainda tenho tanto a falar. Acho que não vou conseguir dar conta de tudo.
Voltando à literatura, mas permanecendo na década de 1980. Watchmen, uma história em quadrinhos com texto do gênio Alan Moore, mudou para sempre a maneira como eu penso no tempo. O gibi é uma desconstrução do gênero de super-herói, algo batido hoje mas ainda fresco na época. Não é uma história sobre viagem no tempo, mas tem um personagem, o Dr. Manhattan, que tem uma perspectiva única. Ele era um cientista que lidava com experiências atômicas, até que sofre um acidente e se torna um homem careca, azul e naturista que pode fazer basicamente qualquer coisa, já que é capaz de reorganizar os átomos como bem entende. Isso também faz com que ele compreenda o tempo de uma maneira diferente, provavelmente mais próxima de como a Coisa realmente é.
Para o Dr. Manhattan, o tempo é… Simultâneo. Há todo um capítulo no meio do livro, um dos mais incríveis que li na vida, que tenta nos passar a noção de tempo do personagem. Ele conta sobre como ainda está vivendo o dia que sofreu o acidente, sendo que também está, anos mais tarde, em Marte, refletindo sobre isso, e também já está lá no fim do gibi, culminando para a conclusão da história. O tempo é uma coisa só: passado, presente e futuro são nomes que vêm da nossa forma de interpretá-lo e de vivê-lo. E o Dr. Manhattan precisa ativamente escolher em qual ponto da vida vai fixar sua atenção o tempo todo.
Outra maneira simples de entender esse conceito é pensar no tempo como um livro. Quando você pega um livro, toda a história escrita está lá, na sua mão. A gente lê uma página depois da outra, de forma linear e, assim, tiramos sentido desse amontoado de palavras. Se estivermos no meio do livro, podemos pensar no que já lemos como passado e no que vamos ler como futuro, mas sabemos que isso diz respeito apenas à nossa perspectiva. Todas as páginas existem ao mesmo tempo. Talvez a realidade seja assim, e é a forma como a compreendemos que é fragmentada.
Essa compreensão traz um incômodo: como fica o livre arbítrio? Se tudo está posto, como fazer nossas escolhas? Encontrei conforto em duas respostas.
A primeira é: quem disse que só porque o futuro está posto, não é o futuro consequente de escolhas? A própria ideia de querer estar livre para fazer as escolhas é profundamente vinculada à compreensão linear de tempo. Nós fazemos todas as nossas escolhas, só que também já as fizemos e ainda iremos fazer. Simultâneamente. Se não somos capazes de mudar essas escolhas talvez seja justamente porque não sabemos realmente como o futuro é. Mudar de quê? Para quê? São escolhas no escuro, que já foram feitas, mas não deixam de ser escolhas. Será que se tivéssemos a perspectiva do Dr. Manhattan, algo nos impediria de fazer outras escolhas e alterar o tecido do tempo? Mas não temos. Talvez o que falte seja perspectiva, não escolha.
O que me leva a segunda resposta, um pouco mais complexa. E se tivéssemos essa perspectiva que nos falta, de fato?
Vamos manter a analogia do livro, só que dessa vez não somos meros leitores. Somos viajantes do tempo, somos autores. Terminamos nosso primeiro rascunho, o livro está todo escrito. Voltamos ao começo, mudamos ações de alguns personagens, cortamos descrições, falas, damos todo um novo destino a outros… Considerando, sempre, que o livro tem que ser coeso, as mudanças geram consequências. Ajustamos as consequências. Assim, terminamos nosso segundo rascunho. Depois faríamos um terceiro, um quarto, e finalmente publicaríamos o sétimo. Neste caso, existem dois tempos: o tempo da história, da primeira à ultima página, que é só o que o leitor vai conhecer e só a última versão, e o tempo da construção, que são os sete rascunhos. É o tempo do tempo.
Não sei se deu para entender, mas pensar sobre isso impede que eu vire noites torturado me perguntando quem raios fabricou o relógio de Em algum lugar do passado. Isso não aparece no filme, porque a versão da realidade a qual somos apresentados é apenas a última, o rascunho final. Talvez existam outros tantos rascunhos, outras tantas versões descartadas da realidade. Talvez na primeira vez o homem tenha comprado o relógio e voltado no tempo por acidente.
O mesmo vale para o Exterminador do futuro. Talvez no primeiro rascunho daquela realidade o líder da resistência se chamasse Bartolomeu Connor e fosse filho de Sarah não com um homem do futuro, mas com um comandante aleatório do exército, que teria criado alguém capaz de derrotar as máquinas. Talvez o Bartolomeu do futuro tenha mandado seu oficial atrás do robô-schwarzenegger para salvar sua mãe e sem querer tenha se apagado da história, criando um novo líder, este sim, John Connor. Então o paradoxo se assentaria.
Não cheguei nem perto de cobrir tudo o que eu queria sobre esse tema. O texto está enorme e tantas histórias ficaram de fora… O livro A curva do sonho, da Ursula K. Le Guin tem uma abordagem que eu não encontrei em nenhum outro lugar: os sonhos estranhos que um homem tem sobre seu passado transformam o presente. Kindred, da Octávia Butler, faz o tal uso funcional da viagem no tempo: a mecânica não é uma questão, o importante é a história que nasce dela. Sem falar de Star Trek, que, entre séries e filmes desde 1966, já experimentou todas as possibilidades.
É natural. O tempo enquanto assunto é igual ao tempo como elemento da realidade: até onde sabemos, infinito.
É dia 25, faltam duas horas para mandar o texto. Terminei mas ainda falta uma reflexão. Acabar no fim. Que clichê. Tá bom, vamos brincar com o tempo. Vou trazer um parágrafo cortado em um dos rascunhos, um dos passados do tempo do tempo. Era para ser o segundo parágrafo, lá no começo.
Costumo pensar em De Volta Para o Futuro como um dos três filmes que eu sou capaz de assistir no repeat. É sobre um jovem frustrado, como qualquer jovem, mas que acaba experienciando uma série de acontecimentos legais, não aprende nenhuma grande lição, ensina algo aos coadjuvantes, e transforma toda a sua vida para melhor sem ter a intenção de fazê-lo. O caso de sucesso do filme é uma pedra no sapato de professores de roteiro que ensinam princípios sobre os arcos dos personagens. Marty não só não aprende com as consequências dos seus atos, ele as pulveriza. O sonho máximo de todo mundo que já quis viajar no tempo.
Talvez o sentido do filme vá ao encontro da sabedoria máxima da vida, seja na filosofia ocidental, seja na oriental: aproveite o presente. Desde seu atraso para a escola na primeira cena, até a chegada do Doc chamando-o para ajudar seus filhos num carro voador na última, tudo ao redor de Marty grita sobre as consequências de seus atos. Mas ele permanece quem é: alguém que, onde quer que esteja, vive completamente o momento com quem está ao seu redor. E assim, transforma todo o tempo.
deixo aqui meu pedido para que você continue com os textos sobre viagem no tempo <3
uma criança nerd obcecada por De Volta para o Futuro encontra outra criança nerd e lhe passa essa obsessão: está escrito o primeiro rascunho desse texto
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