É comum ouvir atores dizendo que é mais difícil fazer rir do que chorar. E, apesar de ser comum, normalmente existe um tom de curiosidade, como se fosse algo surpreendente. A ideia de que o mais difícil é o que, em tese, tem menos carga dramática parece um contrassenso. Por que fazer chorar é mais fácil?
Pelo bem do exercício, vamos dividir todo o mundo ficcional entre comédias e tragédias. Claro que esse binarismo não existe desde a Grécia Antiga, quando se usavam as máscaras que hoje são símbolo das artes cênicas. Hoje existe todo um espectro na ficção, com muitos tons de cinza entre o otimismo e o pessimismo. Mas preciso opor esses dois conceitos para construir meu caso. E minha intenção aqui é defender o otimismo.
Comédia é meu segundo gênero preferido — atrás apenas da ficção especulativa. Mas, assim como acontece com os gêneros fantásticos, os humorísticos ou mesmo os dramas mais otimistas sofrem de uma certa falta de credibilidade. Tudo bem, o fantástico remete aos sonhos, à imaginação, à fantasia e, embora não concorde, consigo ver como pode ser considerado algo infantil. Mas e quanto ao humor? À esperança? Ao otimismo? À alegria? Só podem existir de maneira superficial?
Mais uma vez, a questão parece ser sobre verossimilhança. O sofrimento, a dor e a tragédia parecem mais verossímeis. Quando sonhamos, de uma forma geral, temos mais sonhos bons ou pesadelos? E os sonhos que sonhamos acordados, com nossos desejos mais sofisticados, nossas fantasias, nossos… Ideais? O pessimista não se considera um realista? Quando, numa conversa, alguém tenta “colocar os pés no chão”, normalmente não é para fazer um contraponto ao otimismo? Trazer para a realidade, para a “terra”, não costuma ser sobre reconhecer as dificuldades da situação?
Mas então o ser humano é cronicamente infeliz? Essa é a realidade? Nossa vida é tragédia e sofrimento e as boas sensações existem apenas para nos distrair do real? Seria muita petulância minha, além de inútil mesmo, tentar responder se temos mais sofrimentos ou alegrias na vida, se a condição humana pende para um lado ou para o outro. Esse é um assunto inesgotável, que nos permeia há eras. Mas encontrei, como sempre, na ficção, algumas reflexões interessantes.
The good place é uma série de comédia que se passa inteira no pós-vida. Começa com os personagens numa sala de espera, até que eles são chamados a uma outra sala, onde um homem explica a eles que acabaram de morrer e, para a alegria deles, foram para o lugar bom. Isso é só começo, e contar mais poderia estragar a experiência. É uma ficção especulativa de comédia, o que pode causar uma dupla torcida de nariz em muita gente. Em determinado momento da série, a protagonista Eleanor Shellstrop reflete justamente sobre nossa consciência de finitude, nossa compreensão — ou a ausência dela — da morte. Como se pode ser feliz se temos a plena consciência de que tudo um dia vai acabar? Pior: como aproveitar o momento se ele sempre pode, realmente, acabar inesperadamente?
Viria daí a relação entre tragédia e realidade? A consciência da nossa própria morte parece ter sido um aspecto importante no desenvolvimento da sofisticação da nossa compreensão do real. A ideia do fim talvez tenha sido justamente o que nos deu uma perspectiva de tempo, mas isso é um assunto que eu quero abordar com mais calma em um texto exclusivo. Por enquanto basta lembrar que, em diferentes histórias, novas e antigas, o amadurecimento está ligado à morte.
Hamlet, e seu irmão espiritual Simba, precisam se entender com a morte do pai para deixarem a passividade da infância. O mesmo acontece com Bambi, que perde a mãe. Bruce Wayne considera sua infância encerrada quando, aos dez anos, vê os pais serem assassinados. Peter Parker só encara suas “responsabilidades” quando perde o tio que o criou. Harry Potter, Frodo, Luke Skywalker, todos começam suas aventuras após a perda de suas figuras paternas. Em Irmãos Karamazov, a morte do patriarca parece ser algo como um elemento de libertação, mas também um problema a ser resolvido, uma realidade a ser encarada. Na Odisséia, Penélope e Telêmaco (esposa e filho de Odisseu), vivem ouvindo que estão negando a realidade ao acreditarem que o herói está vivo durante os dez anos que passam esperando seu retorno da guerra. Romeu e Julieta precisam morrer para que seus pais “caiam na real” sobre a estupidez da briga entre as famílias. Até Brás Cubas tem que estar morto para nos apresentar uma perspectiva honesta e real sobre a sua vida.
A morte é o lembrete da realidade. Nós nos distraímos, esquecemos da presença dela, mas ela está lá, no fim da nossa história, esperando a nossa vez. Ainda assim, de uma forma de outra, quando perdemos alguém há sempre um elemento de surpresa. Uma sensação de que “é mesmo, a vida acaba”. Assim, sempre que lembramos que vamos morrer, estaríamos nos lembrando do que é real, da única certeza que realmente podemos ter sobre a vida. O resto, portanto, é escapismo. É distração.
Então é isso. A vida é uma tragédia. A dor e o sofrimento nos obrigam a encarar a realidade. E o que não falta ao nosso redor é dor, sofrimento, e morte.
Isso está posto. É certo que o sofrimento nos movimenta, nos faz agir. Quando Proust fez uma reflexão sobre sua vida, percebeu que aprendeu mais nos momentos de sofrimento do que nos momentos felizes. Eu não li Proust, fiquei sabendo disso pelo Tio Frank, o maior estudioso de Proust dos EUA, em Pequena Miss Sunshine — uma comédia. O contraste entre a fala desse personagem, um suicida aliás, e o tom cômico e a beleza desse filme vão justamente ao encontro do que estou tentando argumentar.
Se o sofrimento é inerente a vida, se essa aura de “realidade” dele vem justamente dessa inevitabilidade, por que não usar a ficção que é, por princípio, artificial, para falar sobre a alternativa? Se não podemos evitar de sofrer, por que não usar a ficção para ir adiante? Será que a ficção otimista, ao invés de negar esse sofrimento, não estaria nos mostrando uma maneira de ir além dele?
Frank Capra dedicou sua carreira ao otimismo. O diretor ítalo-americano começou a fazer filmes durante a grande depressão dos anos trinta e se consagrou nos anos da segunda guerra. A maior parte de seus filmes tem lições bem básicas sobre ética, esperança e senso de comunidade. Capra acreditava que o cineasta tem o privilégio de ter uma audiência por duas horas, e, portanto, tem uma responsabilidade sobre como vai influenciá-la durante esse tempo. Talvez ele tenha sido fundamental na construção da ideia do final feliz hollywoodiano, hoje estandarte do inverossímil.
Mas Capra era um sucesso, e realmente tocava e toca, até hoje, o coração das pessoas. Em A Felicidade Não se Compra, um anjo revela a um homem desenganado com a vida, prestes a perder a casa, como seria a sua comunidade se ele não tivesse existido. Ao fim do filme, o mocinho percebe que a verdadeira riqueza está nas relações que criamos, e em como tocamos aqueles ao nosso redor. Um final óbvio, mas nem por isso menos impactante. Em A Herança de Mr. Deeds e em A Mulher Faz o Homem, vemos variações desse tema, com personagens puros de coração que são colocados em ambientes cínicos e, ao invés de passarem a pender para o pessimismo, acabam inspirando as pessoas em seu entorno.
Se o cinema dos anos quarenta é muito distante, encontramos o mesmo princípio em Ted Lasso, série hit da Apple durante a pandemia. Ted é um treinador de futebol americano que é contratado por um time de futebol inglês. Seu bigode e seu sorriso são o cúmulo da cafonice e seu olhar para o mundo a princípio parece infantil. Mas ele cava um lugar na alma de cada um ao seu redor e, claramente, da audiência também.
Ted Lasso é um excelente exemplo desse tipo de ficção: o personagem, assim como a série, parecem ter consciência das dificuldades do otimismo. Ted sabe perfeitamente como é percebido, tem total noção de que suas ideias são estranhas e que podem gerar descrença e até incômodo. Mas ele insiste apesar disso. É é através do que ele faz, mais do ele fala, que as pessoas ao seu lado começam a se transformar. É justamente pela percepção da tragédia e pela insistência apesar do sofrimento, que Ted inspira.
O mesmo acontece em Pequena Miss Sunshine, em quase toda a obra do Capra e nas melhores histórias de otimismo. Passa por aí a grande lição de Próspero ao fim de A Tempestade, última peça de Shakespeare. O personagem atrai seus rivais de anos até a ilha onde se exilara. Arquiteta uma vingança, chega a executar. Mas, ao passar por tudo isso, coloca a vida em perspectiva, e desiste dos maus atos diante do amor de sua filha por um de seus inimigos.
Se fazer rir é mais difícil que fazer chorar, o otimismo verossímil talvez seja possível, mas apenas mais difícil. E justamente por ser mais difícil, pode ser também mais interessante, como uma escultura trabalhada nos mínimos detalhes. É fácil convencer pelo sofrimento, nossa vida está cheia dele, já estamos acostumados à associá-lo ao real. Difícil é convencer pela esperança, difícil é apresentar uma alternativa.
E pode existir aí, também, um trabalho da audiência. É o exercício ativo de convencimento, quase de fé, de tentar comprar a ideia do autor e embarcar na história. Não para aliviar o lado do autor, mas para levar algo valioso da experiência, da catarse. Ted Lasso e Pequena Miss Sunshine nos pegam pela mão, mas uma filmografia dos anos quarenta como a do Capra precisam, e muito, da nossa boa vontade.
Não é fácil acreditar, mas sugiro que, ao conseguir, nos tornamos um pouco melhores.
Não posso falar sobre otimismo sem citar — novamente — Star Trek, que imagina uma utopia na terra, o que os permite arranjar encrencas em outros lugares do espaço. Eu sou capaz de relacionar qualquer assunto com Star Trek, mas não quero ser monotemático, por isso fica aqui apenas essa menção.
Em The Good Place, a conclusão da Eleanor é de que a dicotomia entre o sofrimento pelo inexorável e a alegria pelo bom momento compõem a essência do ser humano. Nós podemos ser felizes, mas como sabemos da morte, estamos sempre, realmente, um pouco tristes.
Mas Eleanor constata por fim que é essa consciência, esse conhecimento sobre o fim da jornada, que enche de significado cada momento da vida.
Esse texto é dedicado ao meu amigo David, amante confesso das tragédias, mas sempre interessado por diferentes perspectivas.
caraca, gostei MUITO <3 terminei o texto morrendo de vontade de rever Miss Sunshine!
ai eu sempre choro nesse episódio de the good place e as pessoas sempre acham esquisito quando eu comento, tendo em vista que é uma comédia rs mas eu choro menos de tristeza e mais de emoção, por ser uma maneira tão leve e bonita de falar de uma coisa tão real. enfim, amei o texto!!