Li bastante coisa legal esse ano, e queria dividir alguns dos meus achados. Peguei minha tabelinha e separei, entre os favoritos, os cinco livros que eu mais tinha vontade de sugerir. Quando juntei, percebi que havia algo que os unia: heroísmo. São histórias que vão do século XIX ao XXII, passando por mundos e tempos imaginários, mas sempre com pessoas corajosas, que passam por cima de suas inseguranças, ajudando e inspirando quem encontram pelo caminho. Certamente meu tipo favorito de gente, seja na ficção, seja na realidade.
Reli A volta ao mundo em 80 dias, do Julio Verne. A primeira vez foi com doze anos, para a escola. Desconfio que tenha sido o primeiro romance com o qual eu tenha me divertido. A sensação, vinte e cinco anos depois, foi a mesma. O Julio Verne merece toda a minha reverência, não só pelo texto agradável, as aventuras mirabolantes e a ação incrivelmente ritmada para o romantismo da época. Mas principalmente porque foi um dos primeiros a construir uma carreira escrevendo ficção científica. Ele não inventou o gênero, mas certamente o consolidou.
O livro é sobre as inovações tecnológicas e o impacto nos indivíduos e na civilização. Sobre quebra de paradigmas, sobre as possibilidades que essas mudanças nos trazem, as antevistas e as imprevistas. Mas o que mais me marcou — tanto aos doze quanto aos trinta e sete anos — não tem nada a ver com ficção científica ou tecnologia. É um personagem, o protagonista Phileas Fogg. Mais especificamente, o modo como ele embarca nessa aventura.
O aristocrata inglês é descrito como uma pessoa muito metódica, com uma rotina rígida e pouca margem para inconveniências. Cada compromisso é agendado e cumprido à risca, na casa dos minutos. Só que em uma noite, no clube que sempre frequentava, Fogg se indispõe com outros cavalheiros por uma diferença de opinião: ele garante que é possível dar a volta ao mundo em oitenta dias, os outros duvidam. O que acontece a seguir é, para mim, o melhor dessa aventura. Pelo que parece ser pura irritação, o protagonista propõe uma gorda aposta — do tipo que o levaria à falência em caso de derrota — argumentando que ele mesmo provaria que o feito é possível.
Parece impetuoso, para não dizer irreal, falastrão. Mas o que se vê ao longo do livro é o compromisso irrevogável do inglês com sua palavra, e principalmente com seus valores. Na mesma noite ele arruma tudo e sai em uma viagem de oitenta dias para dar a volta ao mundo, alternando todo tipo de transporte. Ele não se abstém de lidar com injustiças quando se depara com elas e chega a salvar uma mulher da execução. Fogg vai se tornando, conforme o texto se desenrola, um homem aventureiro, que vai refinando sua relação com o imprevisto e o caos que, se não deixam de perturbá-lo, vão sendo reconhecidos como elementos da vida.
Acima de tudo, o que eu gosto nessa história é a ideia de que todos estão sujeitos a romper com suas estruturas, a aceitar uma grande aventura em qualquer momento da vida, e a mudar, definitivamente, se comprometendo com a experiência do novo.
É próprio de histórias de jornada do herói o personagem que leva uma vida calma, quase sempre tediosa, e que é arrancado dessa vida para embarcar em uma aventura insólita na qual ele é desafiado e, invariavelmente, responde à altura. É o caso de Phileas Fogg e também do jovem feiticeiro do livro O Feiticeiro de Terramar, da Ursula K. Le Guin.
O livro é sobre um garoto desse mundo imaginário de Terramar, algo como um enorme arquipélago, com inúmeras ilhas independentes política e culturalmente. O garoto é chamado por nomes diferentes ao longo da história, e a própria história fala sobre a importância de nomes, de coisas e pessoas, e sobre o poder que se ganha ao conhecê-los.
O rapaz, vamos chamá-lo de Gavião (seu verdadeiro nome pode ser um spoiler), sai ainda criança da vila onde nasceu para aprender a desenvolver suas evidentes habilidades mágicas. Inicialmente vai morar com um tutor, seu primeiro mestre, mas depois passa para uma escola. Sim, muitos elementos de Harry Potter. Mas O Feiticeiro de Terramar é trinta anos mais velho.
Gavião é extremamente habilidoso, um destaque entre seus pares. Só que também é ansioso para usar seus poderes e, como consequência, descuidado. Em um ritual proibido que ele executa apenas porque foi desafiado, o rapaz acaba deixando passar para o seu mundo uma criatura sombria, que ele não consegue controlar e passa a persegui-lo. Ao longo da sua jornada, Gavião faz o que pode para fugir da criatura, tanto para se salvar quanto para levá-la para longe das pessoas com quem se importa.
O Feiticeiro de Terramar é daqueles livros que nos fazem pensar, mas principalmente nos fazem sentir. É sobre verdade, sobre aprendizado, sobre essência, das coisas e das pessoas. É sobre aprendizado, sobre as consequências do saber e do poder e, principalmente, sobre humildade.
Ursula Le Guin é uma autora excepcional. Penso que literatura de ficção especulativa costuma ser mais sobre o conteúdo do que sobre a forma. É mais sobre criatividade do que sobre técnica, mais sobre inventividade do que estilo. Pois a Ursula consegue tudo. Além de criar mundos e personagens imaginativos e coesos, ela nos entrega uma literatura impecável, sofisticada tanto nas construções das frases quanto nas provocações do íntimo. É uma autora completa, e todos os seus livros refletem isso.
As tumbas de Atuan é o outro lado da moeda. Poucos anos depois de escrever a história do Feiticeiro, Ursula se viu com vontade de voltar ao mundo de Terramar. Se na primeira vez o protagonista era um homem, agora é uma mulher. A história é um espelho da primeira. A garota, Tenar, também sai de casa muito jovem. Só que aqui as diferenças entre os volumes começam a se acentuar. Se Gavião sai por vontade própria, Tenar é obrigada. Se o rapaz vai aprender a controlar magia, a moça vai aprender que magia é o mal do mundo.
Tenar é, segundo os costumes locais, a reencarnação da sacerdotisa de um templo, o mesmo das tais tumbas do título. A garota é treinada para proteger o lugar, um labirinto onde a luz não chega. Ela aprende que toda a magia, fora a dos mortos e enterrados, é maléfica. Que livros são nocivos. Aprende a seguir rituais e qual é o seu papel de guardiã em toda aquela organização. Até que Tenar se depara com um intruso, alguém com outra cultura e outros valores.
Se O Feiticeiro de Terramar é sobre os riscos do conhecimento, As Tumbas de Atuan é sobre os riscos da ignorância. É uma história que fala de fé cega, de coragem para questionar, de rebeldia. E se alinha com o primeiro livro quando discute a verdade. Ambos são esforços de compreender o aparente paradoxo: o esclarecimento pode trazer um peso muitas vezes insuportável e, ainda assim, é o único caminho quando se quer construir algo.
A dualidade entre homem e mulher também é explorada em Mhudi*, de Sol Plaatje, aqui através de um casal protagonista. O livro é um clássico sul-africano e um épico moderno. A história parece uma fábula, algo que poderia ser contado por avós em casa ou perto do fogo. É baseada em fatos reais (não em fatos fictícios), e acompanha a sanha conquistadora de um rei e a posterior insurgência dos povos derrotados.
O herói perde toda a sua tribo e sua família e se vê vagando a esmo, tentando se proteger de leões e outros perigos da natureza. É então que ele conhece Mhudi, uma mulher que passava pela mesma situação. O amor entre eles floresce, e ambos se apoiam e encaram juntos a luta por sobrevivência.
Acontece que o espírito resiliente do casal vai ganhando notoriedade e as histórias a seu respeito vão crescendo em quantidade e importância. É interessante observar as dinâmicas de gênero de culturas não hegemônicas, como a africana. Aqui o homem ainda é mais dado às tarefas da guerra, mas a relação entre ele e Mhudi é um tanto mais horizontal. Ela o inspira e aconselha, e chega a exercer um papel de protagonismo na lenda que vai se formando ao seu redor. Mhudi se torna um farol de fé, esperança e resistência.
Antes de tudo, o livro é uma bela epopeia. Lembra, em tom e magnitude, a Ilíada. Mas ao mesmo tempo é completamente diferente, gerado por uma cultura com outras raízes. Mhudi é menos sobre a guerra e mais sobre companheirismo. Menos sobre retribuição e mais sobre resistência. É sobre símbolos e a importância prática deles. Também é sobre fronteiras, físicas e culturais, menos sobre invadi-las, mais sobre superá-las.
Do passado épico de Mhudi, vou para o futuro distópico do último livro dessa minha retrospectiva. Periféricos** é um dos mais recentes trabalhos de William Gibson, famoso por Neuromancer, pedra fundamental da literatura cyberpunk e precursor do conceito de ciberespaço. A literatura de Gibson é caótica. Ele te joga em um universo próprio, complexo, sem instruções ou notas de rodapé. As informações chegam de todos os lados e a ação vertiginosa se impõe sobre a confusão criada pelo acúmulo de elementos dessas realidades inventadas.
Diferente de Neuromancer, escrito nos anos oitenta, Periféricos (já dos novos anos dez), faz tudo com um pouco mais de calma e maturidade. Ainda demora mais de cem páginas para que se comece a tirar algum sentido maior das duas tramas paralelas que orientam a história, mas as respostas vão chegando, as peças vão se encaixando e a aventura vai se impondo.
A protagonista é Flynne, uma mulher que vai substituir o irmão em um trabalho cibernético e acaba presenciando um assassinato. Agora a vida dela está em risco, e as pessoas que contrataram o irmão vão ajuda-la a ficar viva. Flynne, por sua vez, deve ajudar essas pessoas a encontrarem o tal criminoso que matou uma mulher na sua frente.
O livro ganha primeiro pelo ritmo, um ponto forte do autor. É uma leitura voraz, que eu engoli em poucos dias. Uma montanha russa de intensidades e emoções. Mas conforme eu avancei no texto e fui entendendo as regras dessas realidades, fui sendo cativado também pela imaginação da trama, pela abordagem criativa de temas clássicos da ficção científica, e pelas possibilidades dessas tecnologias imaginadas.
Mas para além de tudo isso, o que mais me cativou foram os personagens. Flynne é um herói incrível. Ela é habilidosa, mas também humilde. Teme o caminho que vai tomando, mas enfrenta de cabeça erguida. É generosa, uma irmã e amiga leal, mas veste o protagonismo e a liderança com convicção. E o mais bonito de ver é como sua generosidade inspira as pessoas ao seu redor.
Periféricos é uma história sobre destino e como desafiá-lo. Sobre como tecnologia (no sentido de estudo de técnica) é essencialmente algo imaterial. E sobre como algo imaterial pode gerar consequências absurdamente materiais. E isso vale para técnicas, mensagens e especulações. Mas também para amor, companheirismo e generosidade.
Phileas Fogg, Gavião, Tenar, Mhudi e Flynne são heróis de épocas e mundos diferentes, unidos pela coragem. Todos dão um mergulho no desconhecido, com nada além de esperança. Talvez seja justamente este salto de fé que os coloque em uma posição de generosidade, de ajudar quem está ao redor. A fé, quando se pretende consistência, demanda ação. Há uma parte pessoal, individual, a ser desempenhada na sustentação da esperança. E esta sustentação acontece através de atos, de exemplos.
Fé e esperança são elementos irmãos, orientados para o futuro. Tratam, via de regra, de algo por acontecer. Ao fim de um ano, um ciclo que se encerra, é natural alguma reflexão sobre o passado. Os últimos anos não tem sido fáceis e os problemas só parecem se complicar. Não sei você, mas eu me acostumei a esperar um ano pior do que o anterior.
Só que termino 2022 com uma sensação diferente, de que a parábola pode estar se invertendo, o ciclo difícil pode estar terminando e outro pode estar começando. Olho para o futuro com fé e esperança. Mas também sabendo que, se a situação for adversa, posso recorrer aos conselhos da Mhudi, ao ímpeto do Fogg, à sabedoria do Gavião, à curiosidade de Tenar e à lealdade da Flynne, entre tantos outros personagens fictícios e reais que me inspiram todos os dias e todas as noites.
Estou em boas mãos.
*Mhudi veio no box “A volta ao mundo em sete clássicos” da Tag Livros. É um projeto chamado trilha literária, eles vendem os boxes fora do clube de leitura. Não consegui encontrar uma tradução do livro fora dessa coleção, e os volumes não são vendidos separadamente. Ainda assim, para quem se animar, recomendo todos os sete livros. É uma experiência maravilhosa essa leitura, e realmente emula a sensação de se estar percorrendo uma trilha, riquíssima, com paisagens, pessoas e culturas singulares e bastante diferentes entre si.
**Existe uma adaptação em série de TV de Periféricos no Prime Video. Saiu este ano. A essência da trama está mantida, e a personagem principal está bastante fiel, impecável. Mas, fora isso, mexeram em alguns elementos chaves do texto do Gibson que, ouso dizer, não deveriam ter mexido. Como adaptação, eu diria que é regular, mas ainda assim uma série bem legal!