Tenho pensado que o fascismo é como a calça jeans, o tênis branco ou a jaqueta de couro: nunca sai de moda. O tema me fascina. Como, depois de tantas experiências ruins, tantas histórias horríveis, reais e fictícias, esse sentimento sempre encontra um jeito de se repaginar e continuar relevante?
Estou tomando a liberdade de classificar o fascismo como sentimento, porque aquilo a que estou me referindo não é um modelo político. Na verdade é, no máximo, um modelo anti-político. Estou falando do sentimento de se estar oprimido por uma ditadura de minorias, que controlaria as regras do jogo. Pela vontade de se impor através da força, das forças das massas, de preferência. Estou falando de grandes grupos com tochas na mão perseguindo grupos menores, ou apenas um indivíduo.
Claro, existe o fascismo histórico, italiano, que serviu de base para ascensão do Mussolini. Mas acho perigoso delimitar essa ideia apenas a esse recorte. Perigoso porque corremos o risco de tomá-lo como algo superado. Não está. Os tempos recentes mostram isso.
A palavra fascismo vem de faixo, ou feixe. O símbolo vem da Roma antiga: um feixe de galhos amarrados. Um galho sozinho pode ser facilmente quebrado, mas um feixe, unido, amarrado, é resistente e forte. Essa imagem é sedutora. É a representação visual perfeita da frase “a união faz a força”. Também explica tudo o que considero necessário entender para reconhecer este tal “sentimento” fascista. A aniquilação das individualidades, a padronização, a importância dada à “força”, até o cordão que a amarra pode ser entendido como o líder unificador ao qual os fascistas invariavelmente recorrem.
É a terceirização do pensamento, o conforto do pertencimento, o sossego da “ordem”.
As histórias sobre fascismo que mais me interessam são, como sempre, as da ficção. O tema é tão abundante, que seria insano tentar listar onde aparece. Vou me ater a duas séries recentes: Slow Horses, da Apple e Obi-Wan Kenobi da Disney. São séries pouco parecidas, uma é um thriller de espionagem e a outra é uma aventura de fantasia.
Obi-Wan é um personagem de Star Wars. Acho que não preciso explicar o que é Star Wars. Tenho certeza que ao ouvir este nome, pelo menos alguns elementos vêm à mente: naves no espaço, sabres de luz e pessoas de capuz. São elementos visuais interessantes e considero um mérito do George Lucas por si só ter conseguido imprimi-los no imaginário popular. Mas o que não me parece notado o suficiente é que, ao longo de todos os filmes, Star Wars constitui uma saga que se dedica a entender os efeitos do autoritarismo e, em alguns momentos, inclusive do fascismo de uma maneira mais literal.
A série do Obi-Wan é uma sequência direta dos episódios I, II e III, que desenham, de maneira bastante didática, que tipo de manipulações seriam necessárias para criar um ambiente fértil para a ascensão do fascismo. Uma guerra é inventada, um exército é criado, a guerra é aprofundada, a desconfiança é plantada, que leva ao medo, que leva à raiva, que leva a um desejo por autoridade forte. O episódio III termina com o fim do senado e da república galáctica e com a ascensão do imperador e do império.
A série se passa dez anos depois disso. O império já está bem estabelecido. Existe uma perseguição por pessoas sensíveis à força, que não é diferente das perseguições que grupos étnicos sofreram e sofrem no mundo real. O Obi-Wan, como um ex-jedi, é um alvo do império e vive escondido, engolindo desaforos e evitando mostrar sua natureza. Apesar dos floreios e da aventura infanto-juvenil, é fácil encontrar, na série, reflexões sobre o autoritarismo.
Inquisidores, nome sem muita criatividade dos agentes do império que caçam os sensíveis à força, andam pela galáxia oprimindo cidades inteiras, torturando pessoas em busca de informações. Assistir a isso me faz pensar sobre quais são os mecanismos do autoritarismo para “amansar” uma multidão. Como tão poucas pessoas conseguem oprimir uma cidade inteira? Como a mera ideia de uma entidade como o império, ainda que longe (o planeta em questão fica na periferia da galáxia), é suficiente para deixar o Obi-Wan, grande guerreiro de outrora, de cabeça baixa? E o cidadão comum? Como poderia se insurgir?
Mais: como essa insurreição, se acontecesse, poderia se manter livre das ideias e da vontade fascista? Isso é sequer possível? Será que precisamos de uma micro dose desse sentimento? Será que a união que não nos deixa entortar pode ser benéfica?
Nessa linha, penso na Rússia atual. Quantas pessoas são, de fato, a favor do Putin e da guerra contra a Ucrânia? Quantas apenas se calam, vendo as milhares de presas. Quantas precisariam falar para que todo o mecanismo, a prisão, o sufocamento se tornasse inviável? O que seria necessário para esse levante?
Em outra cena de Obi-Wan Kenobi existe um cidadão comum do império, um fazendeiro alien (sempre importante lembrar que alien para nós, pessoas reais, que moram na terra) que voluntariamente leva uma insígnia do regime no seu caminhão. Uma fala dele não me sai da cabeça: “não tem nada de errado com um pouco de ordem”. Ele representa a pessoa satisfeita, o cidadão de bem que quer levar sua vida em paz e considera que quem teme o regime é porque deve algo. Claro, “um pouco” de ordem é um eufemismo neste caso.
Em um episódio What If, animação ambientada no universo cinematográfico da Marvel, um robô quer acabar com toda a vida no universo, e depois em outros universos. E o que ele quer? Ordem. A vida é caótica, o livre arbítrio então, nem se fala. Em última instância, não existe ordem maior do que a de um cemitério.
Slow Horses está no outro lado em quase todas as questões. É uma série realista, ambientada em Londres nos dias de hoje. Os protagonistas são um grupo de agentes do serviço de inteligência britânica considerados “pangarés” pela organização. São, essencialmente, pessoas definidas pelas merdas que fizeram em suas carreiras. Aqui, mais uma vez, os problemas do caos. Só que no caso dessa série, o caos ganha todas.
O fascismo nesta série é ainda uma ameaça, não algo estabelecido. Os vilões principais são nacionalistas clássicos, inflados por uma ideia de uma Inglaterra “pura” etnicamente. Estão certos de que os muçulmanos têm um plano para dilapidar pouco a pouco o modo de vida inglês. O discurso não soa absurdo e nem fantasioso, basta pensar no brexit e, até mais recentemente, na coleção de figuras que disputaram a eleição na França.
Sob um olhar mais prático e genérico, a série mostra o confronto entre as instituições republicanas e grupos autoritários e antidemocráticos. A ideia, talvez paradoxal, de que o autoritarismo é vencido por autoridades.
Mas talvez haja uma outra leitura também. Os slow horses, os pangarés, são atrapalhados, metem os pés pelas mãos o tempo todo. E não são os únicos. A série é quase uma comédia de erros, e acho interessante como pode ser vista como uma briga entre caos e ordem, com a ordem levando quase sempre a pior. O caos está nos pangarés que não conseguem seguir um plano, mas também está na agência do governo e nos próprios terroristas.
É difícil falar mais sobre a trama sem estragar a experiência, mas vale dizer que no fim, ainda se discute justamente qual é o limite do autoritarismo. Quando o herói se torna igual ao vilão que está combatendo?
Não tenho nenhuma dúvida sobre a importância da ordem, inclusive para a minha sanidade. Mas existe ordem sem autoridade? Existe autoridade sem autoritarismo? Existe um caminho sem a ameaça do fascismo?
Claramente o tema não está esgotado, seja na realidade, seja na ficção. Não sei se um dia se esgotará, mas enquanto isso histórias serão contadas. Reais ou fictícias.
Adorei! E dentro das séries de Star Wars, uma que retrata bem esse clima é a Andor!
caraca, gostei demais! parabéns, mica <3