“E nisto consiste a moral: coisas que faremos e das quais depois sentimos repulsa. Não, isso devia ser imoralidade, num ponto de vista muito amplo.” Hemingway - O sol também se levanta
Moral e ética são temas que vêm aparecendo e reaparecendo nas minhas experiências com a ficção. Talvez, para o olhar atento, elas permeiem a maior parte das boas obras. Talvez até este livro do Hemingway que, apesar da citação, não é em si um tratado sobre o tema. O sol também se levanta conta sobre herdeiros que flanam pela Europa procurando emoções, arrumando distrações e conflitos para lidar com o tédio. São inteligentes e sagazes e tratam com banalidade a crueldade que inflingem principalmente uns aos outros. Seus excessos são relatados pelo protagonista, um jornalista e aparentemente a única pessoa que trabalha, testemunha ocular e partícipe das “aventuras”.
Essa mesma tribo — a dos herdeiros errantes entediados — está presente em um outro livro, este sim uma obra que nos provoca nas nossas concepções sobre moral e ética. Estou falando de O talentoso Ripley, da Patricia Highsmith. O livro foi adaptado algumas vezes para o cinema e, recentemente, para a série de tevê Ripley, da Netflix. A série é impecável. Embora o protagonista não seja exatamente como eu imaginei — ele me parecia mais novo e carismático, envolvente, no livro — as essências da história e do personagem me parecem perfeitamente preservadas. Assim, no que nos importa agora, falar do livro é falar da série e vice-versa. Vou tentar andar na tênue fronteira entre os teaseres e os spoilers.
Um resumo rápido: Ripley é um jovem trambiqueiro novaiorquino que é contratado pelo pai de outro jovem, este um herdeiro, para viajar para a Itália e persuadir o rapaz a voltar para casa. O tal pai acredita que Tom era amigo de seu filho, impressão equivocada, mas que o protagonista não tenta desmentir. Ele embarca para a Europa e encontra Dickie Greenleaf, o herdeiro errante entediado, em uma cidade litorânea da Itália.
Tom é o vigarista, Dickie é a vítima. Mas o herdeiro é insuportável na maneira displicente com que leva a vida, uma vida de sonhos para muitos, com uma renda fixa que permite que ele não trabalhe e aproveite seu tempo como bem entende. Uma vida dos sonhos para Tom, que contrasta com Dickie no desejo e no prazer de usufruir de tudo aquilo. Um desejo arrebatador, que incentiva Ripley a cometer atos abomináveis.
Ainda que a história de Tom Ripley nos coloque em uma posição desconfortável com relação às nossas ideias de certo e errado, moral e ética nunca são debatidos literalmente. E essa contradição talvez seja o maior sinal de que estamos falando de uma pessoa sem escrúpulos.
E os atos são realmente abomináveis. Mesmo assim, o leitor (e o expectador) muitas vezes se vê torcendo para que Ripley consiga se safar. Eu lembro de pensar “como ele vai sair dessa?”, e de me forçar a considerar que qualquer possibilidade deveria me deixar feliz, ele sendo pego (justo) ou não (interessante). Mas será que eu realmente conseguia manter esta neutralidade?
Baseado nestes fatos fictícios dei um mergulho na minha alma e o que eu encontrei não foi muito bonito. Existe um despeito, da minha parte, com herdeiros errantes entediados, assim como uma simpatia por pessoas passionais, sagazes e inteligentes. Me parece que esta alquimia, engenhosamente criada pela autora, me colocou (ainda que com certo horror) do lado do Ripley.
Não posso defender os atos abomináveis, e tomara nunca venha a sequer conhecer alguém como Tom Ripley, mas a versão fictícia dele me cativou. Talvez a distância que a ficção imprime deixe que meu lado mais íntimo sinta o que quer sentir, sem o peso da realidade. Talvez seja como jogar GTA (o Grande Ladrão de Carros) onde eu roubo e mato pessoas sem culpa, justamente porque nunca vou fazer isso na vida real.
Mas o que querer fazer isso, ainda que de brincadeira, diz sobre mim? São meus atos ou meus desejos que me definem como uma pessoa moral, ou ética? A vontade de transgredir é uma transgressão em si?
Estou expondo manifestações da minha alma. E minha alma não é moral. Minha alma é imoral.
A Alma Imoral é o nome de um livro, que virou peça, que está em cartaz há dezoito anos. O autor do livro é o rabino Nilton Bonder, e a peça foi idealizada pela Clarice Niskier. Não li o livro. Assisti a peça em seus primeiros anos e, recentemente, reassisti. A obra me acompanhou ao longo desse intervalo, por suas anedotas, alguns de seus contos, mas principalmente pela epifania principal: a alma não só não tem moral, como é avessa à ela. É imoral.
Como bom fã de ficção científica, quero deixar claro que, quando digo “alma”, não estou pensando em algo etéreo, nosso fantasma, nosso espírito. Estou pensando em algo como a parte mais essencial, íntima, da nossa identidade. O eu que transita entre o consciente, o inconsciente e o subconsciente.
A ideia geral é que, como seres humanos, estamos interessados em transcender. O que é este ensaio, senão uma forma de transcender? O leitor tem acesso a uma parte de mim, ele não precisa estar perto ou sequer me conhecer, e ainda assim a minha existência transborda meu corpo e causa — com sorte — um impacto. Em última instância, um texto pode transcender a própria vida do autor. Estou falando de escrita e textos, mas pode ser criação de filhos, acumulo de bens, busca por fama e fortuna, por poder, por iluminação, por um outro ser que entenda nosso íntimo. Sempre a transcendência.
A peça — e provavelmente o livro — propõem que essa necessidade de transcendência é também uma necessidade de transgressão, na medida em que por natureza seríamos contidos em nossos corpos. Mas nós somos nossos corpos? E a vontade de transcender?
A alma nasce, desta forma, através de atos que desafiam a natureza do corpo, atos de traição. E qual é o elemento criado para preservar o corpo? A moral. Segundo o texto, a moral é um recurso gerado para garantir a reprodução e a multiplicação da espécie, dos corpos, através de normas rígidas. A alma não está interessada nestas normas. Aliás, a alma está interessada em questionar estas normas, em questionar a moralidade, por sua própria natureza transgressora. A alma é imoral.
Um filme recente me cativou justamente por apresentar personagens que parecem convictos em dar voz e agência a essa alma imoral. Em Pobres Criaturas a personagem principal, Bella Baxter (a Emma Stone), é criada através de um ato completamente imoral, justamente uma violação de corpos. Um médico/cientista louco — também pouco afeito à moralidade — resgata uma mulher de um suicídio. A mulher teve morte cerebral, mas ela estava grávida e a criança ainda não nascida vivia. A maneira como o cientista conta o que fez é chocante e cômica, porque ele diz que era uma atitude óbvia diante de tal situação: ele colocou o cérebro da filha na mãe.
Assim, de um ato de profunda imoralidade, nasce uma pessoa com um caminhão de características peculiares. Bella Baxter vem ao mundo em um corpo biologicamente adulto, uma criança em um corpo de mulher. Um ser que não construiu moral em um corpo historicamente controlado por este imperativo — e que talvez seja a própria razão da existência da moralidade.
A personagem é magnética. Logo fica claro que se trata de uma pessoa com uma inteligência sagaz, rápida, passional, que se desenvolve em ritmo acelerado. O principal: é uma alma livre. E a forma mais explícita do exercício dessa liberdade é o modo como Bella se relaciona com sua sexualidade. Desde que descobre a masturbação, e fica maravilhada, não vê muito problema em tratar sobre essa questão com absoluta franqueza e publicidade. Para não contar o filme todo, acho que basta dizer que Bella quebra boa parte das expectativas para uma mulher, e não só uma mulher de sua época.
Talvez Bella não seja imoral, no sentido de que ela não está buscando ir contra as regras. Ela apenas as despreza. Talvez o adjetivo mais apropriado fosse “amoral”. E ela é assim tanto pelo contexto peculiar de seu nascimento, quando pelo contexto social em que foi criada, na casa de um homem que não está interessado em moralidade e menos ainda em se desculpar por isso.
O que mais me deixou reflexivo em Pobres Criaturas é que eu me afeiçoei a esses personagens sem moral. E não da mesma forma que eu “me afeiçoei” ao Ripley, uma afeição que me deixa um pouco constrangido. Não, eu me tornei um verdadeiro fã da Bella Bexter, um fã irrestrito. Mas, se tanto Bella quanto Tom são personagens avessos à moral, o que eles têm de tão diferente?
Bella pode não ter moral, mas tudo o que ela faz parece certo. Nós torcemos por ela (claro, aqueles de nós que já desconfiamos da moral) e há uma catarse em vê-la desafiar tantos tabus de peito aberto, convicta e cheia de amor. Sim, Bella é capaz de amar. Ela ama um homem com quem escolhe se relacionar, ama a governanta que a acolheu no começo da vida, e e ama seu criador. Mas além disso, Bella parece ter um amor genérico à disposição da humanidade. Ela se choca com a miséria, se indigna com a exploração e se revolta contra o abuso dos homens.
É uma personagem ao mesmo tempo amoral e cheia de virtudes. Essa aparente contradição é intencional, e se revela também na estética do filme. Ele é ao mesmo tempo visualmente grotesco e absurdamente bonito. Às vezes ao mesmo tempo.
Bella é um herói. Eu não a consideraria nem um anti-herói, mas um herói, de aventura mesmo, daqueles que ajudam os fracos e oprimidos. Constatar isso me fez constatar que um herói não precisa ser moral. Que a moral não tem nada a ver com heroísmo. E que talvez heroísmo tenha a ver com ética.
Lembrei, principalmente, que ética e moral não são a mesma coisa.
Vou usar as palavras de uma psicóloga que admiro enormemente, estudiosa do assunto:
“A Ética é o exercício individual de reflexão sobre os conteúdos morais codificados por uma certa sociedade, num dado momento histórico. Ela pressupõe a sustentação da vida em comunidade. (...) em última instância, a Ética busca reconhecer quais aspectos de uma dada moralidade favorecem a sustentação do que chamamos a vida humana e os que a ameaçam. Reconhece a alteridade como base da vida social. O 'Eu' e 'Outro' e a sua interdependência. (...) Emerge o campo das relações, onde se estabelece a necessidade da reflexão ética: daquilo que devo, posso e quero fazer e daquilo que não devo, não posso e não quero fazer."
A psicóloga em questão é Deborah Bretas e, sim, somos parentes. Ela é minha mãe. Considerei ético deixar isso claro.
A chave aqui é: a ética é o exercício, individual, de reflexão. Enquanto a moral talvez seja um conjunto de normas coletivas, que prescinde de reflexão e, assim, despreza individualidades. Despreza e aprisiona… almas. Bella Baxter ignora as normas coletivas precisamente porque reflete sobre elas. E ao fazer isso e escolher conscientemente ações que considera mais sustentáveis para uma vida em sociedade, ela é ética.
Diferente, claro, do Ripley, que não reflete, e se refletisse seria para racionalizar a escolha pelos caminhos que atendem seus desejos.
Impossível assistir pobres criaturas e não pensar em Frankenstein. É um romance pelo qual sempre tive muito apreço, mesmo antes de ler, por ser a pedra fundamental da ficção científica. Li só recentemente e percebi que a história de Bella Baxter, apesar de partir de uma premissa bastante similar, é diametralmente oposta à história do romance de Mary Shelley. E me parece que a chave dessa diferença é, justamente, a moral.
Victor Frankenstein é um jovem estudioso das ciências naturais, especialmente obcecado pelo progresso científico, que devia causar euforia e vertigem nas pessoas naquele fim do século XVIII. Durante seus estudos universitários, ele se dedica a encontrar a essência da vida, algo que possa tranformar o inanimado em vivo. Sem explicar exatamente como, Frankenstein revela que encontra essa resposta. Inebriado pela ideia de cruzar fronteiras científicas quase inimagináveis, confecciona um corpo, aparentemente a partir de cadáveres, e dá vida a ele.
O problema é que assim que o cientista vê o sucesso de sua empreitada, personificado em um homem de mais de dois metros, com uma aparência grotesca, ele se arrepende. E o que Frankenstein faz? Foge. Deixa sua criação, o monstro, para trás. Um ser que acabou de nascer, sem qualquer tipo de orientação, principalmente sem qualquer tipo de carinho. O contrário do que Bella Baxter teve ao nascer. Me pergunto se Victor faria o mesmo caso o monstro fosse bonito.
Na sequência da história, o jovem entra em um vórtice de arrependimento e desespero, que dura meses. E tudo piora quando “atos abomináveis” começam a acontecer com pessoas queridas ao cientista. O livro é escrito em formato de memórias, um relato do próprio Frankenstein a um interlocutor, e o protagonista está totalmente consumido pela culpa. Mas culpa do quê, exatamente?
Em certo momento, o monstro confronta o criador. Muito mais eloquente do que costuma ser representado na cultura pop, a criatura argumenta que qualquer ação abominável que cometa seria responsabilidade de Victor, que o abandonou nos primeiros instantes de vida, e nunca o ensinou sobre certo errado.
Mas não é esta a culpa que o cientista sente, a culpa sobre o que ele deixou de fazer pelo monstro. Ele se arrepende de tê-lo criado. Seu erro, na sua visão, tem a ver com profanação. Ele ousou brincar com poderes divinos. Ele foi imoral. Irrelevante o fato de que ele não foi ético ao abandonar sua criação porque, se ele fosse moral, não a teria criado.
Tanto é que Frankenstein é apenas o primeiro nome da obra. O nome com sobrenome é: Frankenstein ou o Prometeu Moderno. Prometeu, aquele que roubou o fogo dos deuses e o entregou à humanidade. Aquele que foi duramente punido por isso, acorrentado, condenado a ter as entranhas comidas por uma ave em loop, pois se regeneravam infinitamente.
Assim como Prometeu, Victor Frankenstein ousou roubar algo dos deuses, o que o fez viver dilacerado pelo arrependimento. Não o arrependimento da violência ou do abandono que causara, mas o arrependimento de ter ousado. O arrependimento de ter dado asas à sua alma.
Alma que, como sabemos, é imoral.
Ripley não é moral nem ético. Bella não é moral, mas é ética. E Frankestein pretende-se moral, mas não é ético.
Os três são passionais. Os três (Victor só num primeiro momento), dão à sua alma imoral liberdade para agir. Talvez aí nos relacionemos com eles, talvez aí esteja o encanto que eles provocam.
Vou encerrar este ensaio com uma fala de outro personagem bastante passional, mencionado inclusive em Frankestein. É o Werther, de O sofrimento do jovem Werther, do Goethe:
“— Ah, que pessoas sensatas são todos! — exclamei, sorrindo. — Paixão! Embriaguez! Loucura! Estão aí tão resignados, sem participação ativa, vocês, pessoas morais, que criticam o ébrio, que abominam o louco, e passam por eles como o padre e agradecem a Deus como o fez o fariseu, por Ele não tê-lo feito como um daqueles. Fiquei bêbado mais de uma vez, minhas paixões nunca ficaram muito longe da loucura, e não me arrependo de nada disso: pois aprendi em grande medida como foi necessário afastar todas as pessoas extraordinárias que lograram algo grande, algo que parecia impossível, tiveram de se apartar, como se fossem bêbadas ou loucas. Mas até na vida comum é insuportável ouvir gritarem sempre para aquele que executa um ato livre, nobre e inesperado, mesmo que parcialmente: "Ele é um bêbado, é um tolo!". Tenham vergonha, sóbrios! Tenham vergonha, sábios.”
A partir desta edição, pretendo encerrar com algo fictício meu. Sim, eu me meto a escrever ficção.
Tenho um projeto de microcontos neste perfil do instagram. Eles são criados a partir de imagens que eu gero com inteligência artificial. Aliás, a primeira imagem deste ensaio também foi gerada por IA.
Aí vai o microconto desta edição:
O “Muro da Alma” é uma obra do artista visual Tavier Vinalande exposta com destaque na Centoexpo que está acontecendo em Umenon, Capital. Ela é toda feita em pigmento inteligente, que se conecta com o link do público que se disponha a sentar no banquinho que fica em frente a obra. Se o usuário fica de costas para o muro e permite o acesso, o pigmento assume formas que estariam em seu subconsciente e “revelam o estado da alma do ser naquele momento”, segundo o artista. Vinalande dedicou um tempo considerável de sua carreira aperfeiçoando o algoritmo que varre os dispositivos para encontrar e sintetizar todos os pequenos sinais que possam denunciar as emoções dos usuários. O resultado é um painel impactante, que desafia o público a experimentar um tipo incomum de nudez. O curioso é que, ao contrário do que poderia se pensar, as pessoas não se intimidam e as filas para a obra são quilométricas. Alguns dizem que tiveram epifanias após sentarem-se no banquinho, que transformaram suas vidas. Outros saem chorando e há relatos de pelo menos dois desmaios até agora. “O Muro da Alma é um muro que derruba muros”, afirma Vinalande, que posa na foto para demonstrar o funcionamento da obra. “E olha que estou em um dia feliz”, brinca.
feliz de ter um texto novo seu na minha caixa de entrada <3
Esse seu texto me remeteu também ao fascínio que temos por impostores da vida real. Adorei a constatação "a alma não só não tem moral, como é avessa à ela. É imoral."