Desde que eu me entendo por gente considero que talvez eu não seja uma pessoa normal. Demorei anos, precisei de muita reflexão, amadurecimento e até um bom tanto de pertencimento para entender e aceitar essa possibilidade. E, ainda hoje, minha pálpebra estremece ao falar sobre isso. Se eu não sou normal, sou anormal. Isso não pode ser bom, certo? Anormal é uma palavra pesada, cheia de carga negativa.
Bom, o que é normal?
Como com qualquer conceito fundamental, acho interessante recorrer à etimologia. A origem da palavra costuma me ajudar a entender qual é o sentimento bruto, a demanda que a gerou. No caso de “normal”, a palavra vem do latim, “normalis”, que é sobre algo que está de acordo com a norma. Dã.
Só que “norma” era o nome do esquadro do carpinteiro. Ou seja, normal, ao menos na origem, tem a ver com padrão, com conformidade no sentido mais essencial, de estar conforme, sob a mesma forma. Talvez também se relacione com uma estreiteza dessa forma, já que o esquadro é algo tão bem definido.
Esta origem me parece afinada com a abstração que o senso comum faz sobre o normal. É o comum, o que se repete, o que é estável de alguma forma. Uma pessoa anormal não é comum e também não seria estável. Existe, talvez, uma bifurcação nebulosa sobre a normalidade. Por um lado pode ser empírico, baseado apenas naquilo que ocorre sempre. É comum, portanto é normal. Por outro lado pode ser mais teórico e moral. O normal seria o padrão de retidão, a regra, a estrutura a ser seguida, como se a realidade tivesse que se adequar à norma. Dos dois jeitos tem a ver com elementos que seguem padrões.
No que concerne a mim, é claro que sigo padrões. Tenho um emprego CLT, vivo com uma mulher, tenho um casal de filhos. Ainda por cima sou homem, cisgênero e — até a conclusão deste texto — me considero heterossexual. Tenho meus amigos, gosto de pedir ifood, jogo videogame, assisto um monte de tevê e pago meus boletos. Tudo isso, penso, é normal. Mas por que, então, eu não me sinto normal? Além disso, é um problema não se sentir normal? E, se não é um problema, por que parece um problema?
A ideia de anormalidade é tão pesada que me sinto desconfortavelmente exposto só de pensar em elencar meus traços anormais aqui, publicamente. Posso dizer, de uma forma abstrata, que tem a ver com uma certa inadequação, uma dificuldade em pertencer. Só que ao me classificar “anormal”, sinto que é como se eu estivesse assumindo que não sou lúcido. O anormal é insano, sua mente não funciona de maneira saudável.
O que é curioso, porque a característica de pensar fora dos padrões vigentes é, teoricamente, extremamente desejada na nossa sociedade. Uma característica de pessoas inteligentes, dos melhores resolvedores de problemas, o santo graal dos recrutadores de talentos. Alguém que pense fora da caixa. Mas isso não seria precisamente um eufemismo para definir alguém “anormal”? Não são duas maneiras de falar sobre a mesma característica?
Ah, quando eu me coloco para refletir sobre porque sou alguém que pensa fora da caixa, é muito mais fácil encontrar elementos que justifiquem essa sensação. Muito mais confortável. Só que estes elementos — os quais vou evitar elencar para também não pender desnecessariamente para o lado da autopromoção — não seriam exatamente os mesmos que eu poderia usar para explicar porque eu sou anormal?
Acho razoável concluir que a necessidade de criar toda uma nova expressão, na qual troca-se a palavra “normal” por “caixa”, é uma evidência interessante de que o conceito de normalidade não é fácil de ser questionado. A palavra está completamente vinculada a algo positivo. Ser normal é bom. Ser normal e saudável.
Eu cresci assistindo filmes de crianças que só queriam ser normais. Claro, muitas vezes elas estavam doentes, ou tinham pouco dinheiro, ou eram orfãs. Mas outras tantas eram crianças que tinham a peculiaridade de viver se mudando e não conseguir criar raízes, que tinham pais que se separavam, ou até mesmo que tinham habilidades especiais. Aprendi que se por um lado “normal” era ser saudável, ter ao menos dinheiro suficiente para uma vida digna e ter os pais vivos, também era criar raízes, ter pais eternamente casados e jamais ter habilidades especiais.
A série Smallville, que se propõe a contar os anos do Superman antes de ele ser o Superman, mostra como, diversas vezes, o jovem Clark Kent sofre por não ser normal. O rapaz consegue levantar um trator com um braço só, mas, coitado, ele só queria levar uma garota pro baile e se divertir como qualquer outra pessoa da sua idade, sem se preocupar se vai quebrar a coluna de alguém ao tropeçar.
NOTA: NUNCA assista Smallville. Dez temporadas e o cara só mete a cueca por cima da calça e voa nos últimos cinco minutos do último episódio da última temporada. E ainda mostram de longe e rápido. Só estou usando o programa pela argumentação.
O Homem-Aranha também tem diversas histórias em que está estafado de ser um super-herói. Ele quer jantar com a namorada, trabalhar tranquilamente, estudar para seu mestrado/doutorado/pós-doutorado, sem ter que largar tudo porque o Duende Verde estava entediado e queria dar um rolê explodindo coisas pela cidade. Peter só queria ser normal.
Todo o argumento de Corpo Fechado passa por essa questão. David Dunn é o único sobrevivente de um horrível acidente de trem. Ao longo da história vamos percebendo, junto com o personagem inclusive, que ele nunca se machuca ou fica doente. Ele inclusive sofrera um grave acidente de carro na juventude, sendo o único que saíra ileso, mas havia usado a ocasião para parar de jogar futebol americano, casar com a mulher que amava e construir uma vida… Normal. O cara queria tanto ser comum, que consegue fazer a si mesmo ignorar suas habilidades especiais. Até, claro, que o Shyamalan resolve fazer um filme para que ele se confrontasse com elas. Será que vale a pena abrir mão daquilo que nos faz únicos para que sejamos normais?
Baseado em fatos fictícios que talvez sejam específicos da minha formação, venho notando — com alívio — que a vinculação automática entre normal e bom também é bastante questionada. Há um fascínio histórico por indivíduos e comportamentos que fogem ao padrão e à norma.
Muitas histórias não existiriam sem seus personagens disruptivos. A protagonista de Orgulho e preconceito é uma mulher do início do século XIX que não pensa em casar. Phineas Fogg, o herói de A volta ao mundo em oitenta dias só gera uma história interessante quando subitamente rompe com sua vida incrivelmente ordinária. Bartleby, o escrivão, é um cara que se recusa a fazer o que se espera dele, e o que se espera é nada além de aquiescência básica no trabalho. Afirma Pereira é uma história maravilhosa de como um homem não consegue evitar agir subversivamente, ainda que nada em sua vida ou em seu temperamento prévio indicassem que ele era capaz disso.
Machado de Assis era genial porque, entre outras genialidades, quis contar a história de um homem medíocre e normal. Mas o fez de um jeito nada normal, já que Brás Cubas não está vivo. Morto, o personagem não precisa fingir sua normalidade.
On the road é um livro dos anos cinquenta inteiro escrito sobre os beatniks. O movimento iniciado nos anos quarenta era exatamente sobre procurar o que existe além da cortina de normalidade. Não sou um grande conhecedor do assunto, mas li On the road e dei uma googlada na época.
Descobri que o termo “hipster” vem junto com os beatniks. Os hipsters eram jovens brancos que gostavam do jazz negro da época e procuravam imitar seus costumes, rejeitando os padrões de normalidade das suas próprias origens. Ainda hoje um hipster é alguém que parece evitar padrões, desdenhando do “mainstream”.
Os beatniks talvez fossem os hipsters em constante movimento, que gostavam de estar na estrada. Tinham asco a toda e qualquer possibilidade de uma vida “normal”. Mais tarde o movimento desaguou nos hippies, e todos tinham em comum justamente o fato de não quererem ser comuns.
Existe mais um padrão entre esses movimentos. Eles nasceram nos anos depois da segunda guerra mundial, junto com os babyboomers. Era uma época de prosperidade para o capitalismo, do american way of life nos EUA e do Juscelino com seus cinquenta anos em cinco no brasil. Era também o início da guerra fria e do macarthismo, quando era perseguida qualquer pessoa que tivesse minimamente tomado um elevador com um pseudo comunista.
Aliás, algo a ser observado: em situações de hegemonia da normalidade, normalmente parece existir também alguma perseguição acontecendo.
Tem um filme do fim dos anos noventa, não sei quão popular é hoje em dia. Pleasantville. Lembro como a premissa do filme me ganhou, porque era sobre gente que entra em um programa de televisão, e eu sempre gostei de personagens que entram em reinos que são ficcionais para eles. A história é sobre dois adolescentes, um irmão (Tobey Maguire) e uma irmã (Reese Witherspoon) que ganham um controle remoto com habilidades especiais.
O irmão queria passar a noite maratonando sua série preferida, “Pleasantville”, sobre uma família perfeita em uma pequena cidade perfeita. O programa, em preto e branco, havia sido produzido nos anos cinquenta e a referência óbvia é “I Love Lucy” e tantas outras séries parecidas que haviam na época. Histórias inteiramente estruturadas nos valores do american way of life. A irmã quer assistir outra coisa. Eles brigam, apertam o botão errado e pimba, vão parar em Pleasantville.
Importante entender que eles não são transportados como seres aliens àquela realidade. Assumem o papel do irmão e da irmã da trama original, com figurino e tudo. E, claro, vão para um mundo em preto e branco. Só que os tons de cinza, aqui, fazem parte daquele universo. Os próprios irmãos enxergam tudo em preto e branco e se espantam que as outras pessoas não notem a ausência de cores.
Conforme o filme vai avançando, vamos entendendo que a cidade tão agradável na verdade é… Morosa? Apática? Cinza? As coisas não pegam fogo, os bombeiros só são acionados para resgatar gatinhos, todos os jogadores de basquete acertam a bola na cesta não importa de onde joguem, ninguém fala palavrão e, claro, as pessoas não transam. Quando os irmãos consideram sair da cidade, descobrem que as ruas são circulares e o lugar não tem entrada nem saída.
Até que, como se espera, os dois começam a subverter a ordem. Um beijo de língua aqui, um amasso ali, o fogo começa a queimar, e as cores começam a aparecer. Um batom, uma pintura, um rosto enrubescido. Aos poucos a cidade inteira e seus habitantes vão ficando coloridos.
Só que os chefes da cidade, o conselho formado pelos cidadãos de bem de Pleasantville, não estão nada felizes com essas transformações. Indecência, imoralidade, estão acabando com o estilo de vida pacato e agradável daquele lugarzinho cinzento. Os coloridos são perseguidos, acuados, humilhados. O normal reage, e o normal não admite o menor desvio.
Uma série mais recente, WandaVision conversa muito com Pleasantville. Wanda, a Feiticeira Escarlate da Marvel, cria, através de magia, uma vida perfeita para si, com marido e filhos, emulando sitcoms estadunidenses de todas as épocas, começando nos anos cinquenta. Ao fazer isso, submete a força toda a população de uma cidade pequena a participar também. Cada desvio, cada tentativa de “quebrar o feitiço” é imediatamente rechaçada. Wanda não quer ninguém interferindo na sua bolha de pertencimento. O curioso é que a Feiticeira é uma imigrante de um país que parece ter sido do bloco oriental na época da guerra fria. É o sonho do imigrante que faz a América sendo imposto na marra. E na feitiçaria, claro.
Talvez sejam os fatos fictícios que eu consumi, talvez sejam os reais que eu vivi, mas esse conceito de “pessoas normais” sempre me perturbou. É importante o plural. Ninguém é normal sozinho, e o que sempre me desconcertou é justamente a sensação de não pertencer e não haver nada que eu pudesse fazer para pertencer. Mais: a sensação recorrente de ser julgado e ocasionalmente punido por não pertencer.
A onda, de 2008, é um filme alemão. Um professor de ensino médio é relutantemente alocado para ministrar um curso curto sobre autocracia. Quando ele esboça os parâmetros gerais do que seria uma autocracia (um único líder com poder absoluto), os alunos desdenham, considerando uma forma de governo ultrapassada, sem a menor chance de sucesso nos dias de hoje. Já falei que se passa na Alemanha, né? O fato de os alunos serem alemães do começo do século XXI certamente traz uma “bagagem” para um estudo sobre autocracia.
Então o professor aceita o desafio de provar para os alunos que o perigo não está tão longe assim. Manda que o chamem de senhor, ordena as carteiras de forma a valorizar sua autoridade, exige falas curtas e objetivas quando forem questionados, pede que todos usem camisas brancas, e ensina-os o valor do ritmo de uma marcha. A ideia é que o grupo funcione como um único ser, uma massa uniforme.
Os estudantes são fisgados pela ideia. Alguns sofriam exatamente por não pertencerem, não saberem como, e estes são os maiores entusiastas. Então começam a dar outras ideias para fortalecer o “movimento”. Criam um nome, “A onda”, e uma saudação própria, através da qual o grupo se reconheceria. Qual a causa do movimento? Nenhuma. Não há qualquer ideologia além de uma abstrata sugestão de que a união faz a força.
Logo “A onda” ultrapassa as paredes da sala de aula e outras pessoas, inclusive de fora da escola, vão se juntando ao grupo. O professor vai sendo sutilmente inebriado pelo poder e a situação obviamente sai do controle. Sem querer dar maiores detalhes do fim do filme, lembro ter sentido que a conclusão era algo como o professor ter sido louco e inconsequente, se não por ter proposto o exercício, ao menos por não tê-lo parado quando começou a ficar perigoso. O culpado era o líder. Ele é detido e o problema é resolvido.
Só que será que o professor criou aquela disposição dentro dos alunos, ou ela já estava lá, pronta para ser cultivada? O que vem primeiro? O líder do grupo ou a demanda pelo grupo? A segunda hipótese parece interessar pouco ao filme. Ainda assim me fez pensar...
Primeiro que, fascismo, né? Desculpa por eu usar este termo tão esgarçado hoje em dia, mas os elementos que eu descrevi aqui são clássicos do fascismo: pertencimento, unidade, força. Organizações verticais baseadas em hierarquia e disciplina, com todo jeitão de exército. E um idolatrado líder, claro.
Segundo que o fato de o “movimento” não ter a mais básica causa definida caiu para mim como a evidência mais flagrante que o combustível daquelas pessoas não é um ideal, um objetivo, mas um sentimento. Não é sobre o fim, sobre uma revolução ou sobre se estar no poder, ou mesmo o que fazer com o poder. É sobre estar entre iguais, sobre o durante. Sobre pertencer.
E isto, me parece, vale tanto para A onda, com suas motivações vazias, quanto para qualquer movimento reacionário antigo ou recente que é, ao menos oficialmente, ligeiramente mais ideologicamente fundamentado. No fundo, me parece, aquelas pessoas querem mesmo é estar entre os seus.
Mas quem não quer, não é mesmo?
Estamos falando sobre pertencimento, e não dá para dizer que a ideia de pertencer seja intrinsecamente ruim. Pertencer muitas vezes é o que mantém uma pessoa viva. O ser humano é essencialmente social e a solidão pode ser destruidora. Encontrar outros como nós literalmente salva vidas, principalmente quando nos sentimos marginalizados. É mais fácil resistir juntos.
Mas quando esta resistência curativa vira opressão? Me parece, cara leitora, que é justamente quando o normal entra na conta. Quando deixa de ser sobre pertencer e passa a ser sobre eliminar quem não pertence.
O grave, na minha opinião, no conceito de normalidade, é que quando se tenta eliminar o “anormal” não é apenas um conflito de concepções ou ideologias — o que já seria violento. Não se trata apenas de apagar o diferente. O mais grave é que se tem a pretensão de apagar o inadequado. Não só algo que eu não sou, é algo que não se deveria ser.
Temo que a ideia de normalidade leve à seguinte conclusão: há um jeito certo de ser e os que não são deste jeito não deveriam existir. É cruel.
Acho o normal cruel.
Existe uma música do Arcade Fire, que fala exatamente sobre isso. Chama, ora veja só, Normal Person.
Algo é tão estranho quanto uma pessoa normal?
Alguém é tão cruel quanto uma pessoa normal?
Esperando depois da escola por você
Querem saber se você
Se você é normal também
Bom, você é?
Estou tão confuso. Eu sou uma pessoa normal?
Você sabe que não sei dizer se sou uma pessoa normal
É verdade, acho que sou legal o suficiente, mas sou cruel o suficiente?
Eu sou cruel o suficiente…
para você?
(...)
E eles vão te destruir até que tudo seja normal (...)
(em tradução livre)
Esta música mexe comigo desde a primeira vez que a ouvi. Talvez tenha sido a faísca inicial para toda a reflexão que gerou este texto. Ela amarra o normal à crueldade de tal forma que o cruel passa a ser a medida do normal. “Eu sou legal o suficiente para ser normal, mas será que sou cruel o suficiente?”. Como se existisse algo como uma meta de crueldade a ser batida para poder se considerar alguém normal.
Se estamos falando em normalidade, “Os Normais” poderia ser uma referência óbvia. A série brasileira do início dos anos 2000 era sobre um casal de noivos, vivendo seu cotidiano, lidando com situações corriqueiras. Claro, de perto as situações eram surreais, e as maneiras como eles reagiam ainda mais surreais, mas entendo que esta era precisamente a ideia do programa. Os personagens passavam pelos mais variados absurdos, mas existia algo como um sufocamento do insólito, como se eles estivessem sempre contendo esses absurdos, talvez forçando a tal normalidade.
Tem um episódio em que o Rui, o noivo normal, fuma um charuto. É a primeira vez que o faz, mas ele quer “fingir costume”, não dar na vista sua inexperiência — olha aí o pertencimento. Então o personagem traga o charuto e tosse loucamente. O Paulo Betti, que estava com ele, comenta “você sabe que charuto não se traga né?”, ao que o Rui responde entre tosses “macho traga!”.
A normalidade, ao menos para a série, não é algo intrínseco ao ser. É um ponto de vista, uma maneira de ser percebido. Algo para se lutar, de difícil manutenção. Se é normal na marra, na base da imposição.
Rui e Vani frequentemente se dizem normais ao longo do programa, com todas as letras. E a série vai dando exemplo atrás de exemplo de como eles são egoístas e cruéis. Principalmente o Rui é o tipo de pessoa que jogaria um humano mais lento para trás se tivesse que correr de um leão. Até faz variações disso ao longo do programa. Assistindo novamente nos últimos tempos, primeiro pensei “poxa, a série diz que é normal ser cruel, como se todo mundo fosse cruel e a vida é assim”. Só que, não sei se é porque gosto muito do programa e acho a Fernanda Young (a autora) brilhante, essa reflexão desaguou em outra mais interessante: não é que ser cruel é normal, é que ser normal é ser cruel.
Esta mesma reflexão talvez esteja em Seinfeld, uma sitcom estadunidense um pouquinho mais velha. A premissa, olhando pelo aspecto da normalidade, é muito parecida. Um grupo de amigos, normais, vivendo suas vidas em seus cotidianos. Eles também são colocados de frente com situações insólitas ou vexatórias e também fazem o que for preciso para que suas rotinas, a maneira como são percebidos e suas convicções permaneçam blindadas.
Em Seinfeld há também discussões e mais discussões sobre normalidade. Não lembro se o conceito é nomeado, mas há muitos debates sobre o que é apropriado. Lembro de um episódio em que as pessoas começam a comer barras de chocolate com garfo e faca e isso se torna viral. O George, amigo do Jerry Seinfeld do título, entra na moda, e quando é confrontado sobre a estranheza da coisa, tem a mesma atitude do Rui ao tragar o charuto: “é claro que eu faço isso, é completamente normal.” Outra personagem não se conforma e briga pela ideia de que não, comer chocolate com garfo e faca não é normal. A discussão pouco passa pela vontade do indivíduo ou pelo mérito da ação (qual a utilidade de usar garfo e faca para comer uma barra de chocolate). O conflito é sobre se aquilo é ou não esquisito. Se é ou não é normal.
Todos os personagens principais da série também são cruéis, também atirariam o humano mais lento aos leões. E eles, como Os Normais, não fariam isso apenas para salvar as próprias vidas, mas principalmente para que suas auras de normalidade não sejam perturbadas, que suas vidas permaneçam tranquilas. Pior do que perder a vida comido por um leão, é o constrangimento de ser comido por um leão.
Mas o último episódio, na minha opinião, redime as nove temporadas de maus comportamentos de seus protagonistas. Aí vai um spoiler, se não quiser pule para o próximo parágrafo. Os personagens enfrentam um julgamento, no qual boa parte das pessoas que foram — metaforicamente — jogadas aos leões ao longo de toda a série aparecem para depor. No fim, Seinfeld, George, Elaine e Kramer são condenados e terminam presos. A crueldade do normal é, finalmente, reconhecida.
Pensando em todos os fatos fictícios que listei agora, percebo alguns padrões. O primeiro é aquela máxima: de perto ninguém é normal. É quase como dizer que o normal não existe. Todos temos nossos traços inusitados, passamos por situações absurdas, temos família ou amigos esquisitos. Ou somos, nós mesmos, os esquisitos. Em todas as situações dessas ficções, o anormal parece querer emergir, querer transbordar, está a um passo de se denunciar e condenar quem trabalha tanto para escondê-lo.
Mas será mesmo que o normal não existe? Há um segundo padrão que eu percebo. Ao contrário do que talvez fosse intuitivo, o normal não seria uma característica inata ou mesmo adquirida. Não dá para se considerar normal e relaxar sobre isso. O normal exige manutenção, exige empenho para ser mantido. Dá trabalho ser normal, e não parece ser possível sustentar essa característica sem algum esforço, o uso de alguma força. Ser normal demanda luta, insistência, sangue, suor e lágrimas, de si e daqueles ao redor.
Ou seja, o normal existe, mas só de longe. Como ideal, como norte, como algo que as pessoas lutam para chegar. As pessoais normais o são porque querem ser. Os indíviduos até são todos diferentes com suas próprias ideias, gostos e hábitos, mas aqueles que buscam a normalidade procuram se manter no padrão. Não são todos iguais por algo interno, mas tornam-se todos iguais porque querem ser todos iguais.
Novamente, pertencimento.
Esse não é um assunto sobre o qual eu sou imparcial, como deve ter ficado claro. Talvez eu mesmo não consiga aceitar minhas anormalidades sem alguma dose de agressividade contra o normal. É o paradoxo da violência: para me livrar de uma violência, talvez eu mesmo seja violento. Fui generalista, como se o normal ou a busca por ele fossem, sempre e naturalmente, ruins.
Mas conheço pessoas que, abertamente, têm essa busca. São discretos, se dedicam a seguir vidas normais, com padrões recorrentes. Casar, ter (dois) filhos, um emprego, ir à igreja, assistir o futebol e tomar a cervejinha no fim de semana. Me parecem pessoas felizes.
E quem sou eu para dizer o que alguém deve fazer para ser feliz? Para mim essa busca pelo normal é dolorosa, mas tenho certeza que não é a experiência de todos.
Procuro fazer o exercício de entender que os caminhos para a realização pessoal são inúmeros e misteriosos. Às vezes eu mesmo sinto falta de uma cartilha. Na minha escolha em pensar cada passo da vida em sua singularidade, tentando desconsiderar normas e convenções, vivo uma exaustão. Dá trabalho ir contra o fluxo coletivo, mesmo que em pequenas doses. E procurar estradas não percorridas, assumir estes caminhos, me deixa um pouco desamparado. Frequentemente me vejo sem exemplos suficientes de pessoas que fizeram a mesma escolha para me orientar. Isto a normalidade oferece: um caminho traçado, consequências mais ou menos previstas, comunidade, pertencimento.
Portanto acho que sou capaz de entender a busca pelo normal, ainda que de não consiga me imaginar empreendendo-a.
Só que hoje, aos trinta e nove anos, não aceito mais ter minhas anormalidades censuradas. Se o normal só existe enquanto modelo, enquanto busca, o anormal, este sim, é intrínseco. Minhas anormalidades são minha individualidade, minha identidade. Não abro mão daquilo que me faz único.
Também dá trabalho, mas eu não seria capaz de viver de outra forma.
PS: tem o famoso livro da Sally Rooney, Pessoas normais. Eu não li, não sei quanto de reflexões sobre o normal existem no livro. Mas acredito que quase todos vocês conheçam a autoridade no assunto, a brilhante Bárbara Bom Ângelo, que está fazendo um mestrado sobre a obra. Se o livro fala ou não sobre normalidade eu não sei, mas a newsletter Queria ser grande, mas desisti passa bastante pelo assunto.
M I C R O C O N T O
Parecia uma escolha óbvia. A água sempre atraíra Lesnor. Gostava da leveza que experimentava, da forma como parecia voar, do frescor constante. Gostava principalmente do silêncio da submersão. Embaixo d’água havia silêncio! Sempre achara um absurdo que, diferente dos olhos, os ouvidos não tivessem pálpebras que pudéssemos fechar quando bem entendêssemos. Algo a ver com instinto de sobrevivência, resquício besta de uma existência menos evoluída. Mas tudo bem. Ele iria viver para sempre embaixo d’água e teria toda a calma que sempre sonhara. Não era um processo complicado, tudo o que Lesnor precisava era ingerir nanomodificadores de DNA por alguns meses, e passar o maior tempo possível submerso (esta, a melhor parte). A aparência monstruosa que viria com a transformação era esperada e, além do mais, monstruosa para quem? No fundo do mar ele faria novos amigos, que não se importariam com isso. Foi uma escolha óbvia. Mas também é óbvio que na prática a teoria é outra. Uma vez que se acostumou com o novo ambiente, tudo mudou. Ficou impaciente com a lentidão dos movimentos, sentiu-se achatado pela pressão do oceano, e o silêncio que esperava, se veio, foi só no começo. O mar era, de fato, bem barulhento. Se uma pedra caía a quilômetros de distância, ele conseguia ouvir, ainda que fechasse suas novíssimas pálpebras auriculares. Além disso não conseguiu fazer um único amigo, achou os peixes todos falsos. Muito simpáticos a princípio, mas logo vinham os cochichos, os olhares de lado, as mudanças de assunto quando Lesnor chegava… Decidiu voltar para a superfície. Não havia como reverter a terapia com o DNA sintético, mas Lesnor não ficou realmente incomodado. O novo visual manteve as pessoas longe, o ajudou a ter o sossego que tanto procurava. Considerou uma descoberta importante saber que não era um ser da água. Mas que não fosse da superfície, já sabia há muito tempo. Desistiu de pertencer e encontrou a paz. E o melhor: agora podia fechar os ouvidos
Obrigado pelo texto, ele me fez criar conexões com vários assuntos que eu estava semanas na cabeça. Me fez ter um novo ponto de vista sobre pertencimento e como isso se conecta com tantos outros aspectos da nossa vida e que estão em pauta pelas redes sociais atualmente.