Me lembro bem, na oitava série, na aula de filosofia, quando o professor nos ensinou sobre o conceito de tabu. Lembro de ter aprendido que era algo sobre o que não se podia falar, mas mais ainda, era algo sobre o que não se podia pensar. Lembro dos nossos protestos, adolescentes cronicamente rebeldes, argumentando que não havia nada que “não se pudesse pensar”. E meu professor, após um cuidadoso preâmbulo em que ele advertiu que diria algo chocante perguntou:
— Vocês já se imaginaram transando com os seus pais?
Mais protestos, mais barulho, mais adolescente cronicamente insatisfeito argumentando que não, não pensou, mas porque não quis, e continuava (que nojo!) não querendo.
Mas, claro, não é bem assim. Existem, sim, coisas sobre as quais não sentimos que podemos pensar. Ou até que não sabemos como pensar.
E há alguns anos venho construindo a impressão de que encontrei aquele que talvez seja o maior dos tabus da civilização contemporânea. Não é incesto, nem suicídio, nem maconha, nem a possibilidade de que o Brasil não seja mais “o país do futebol”. Estes assuntos, perto do tema deste ensaio, são muito mais discutidos.
Suspeito que o maior de todos os tabus seja a propriedade.
Atenção: não estou falando da propriedade privada apenas. Estou falando da ideia de propriedade, privada ou pública.
O mundo habitável já foi praticamente todo loteado. Existem algumas exceções de terras sem dono, mas cada uma tem uma explicação histórico-geográfica para este absurdo. É chocante pensar que algum lugar do mundo não seja de ninguém. Mas não estou falando apenas de territórios, tudo é de alguém. Inclusive os bens públicos que são conceitualmente de todos e burocraticamente do estado.
A ideia de propriedade me parece um tabu justamente porque estamos tão habituados a ela que sequer pensamos que ela é… Uma ideia. É uma criação humana, algo artificial e, portanto, arbitrário.
Tudo bem, os outros animais têm territórios e se apegam a objetos. Mas nossos territórios não são como os deles, nem as nossas posses. Se um cachorro esquece um osso e vai latir para o motoqueiro, ele até pode ficar frustrado por não encontrar o objeto na volta, mas ele não se sente injustiçado. Se uma matilha de lobos deixa de demarcar seu território por muito tempo, eles não entendem que aquela terra pertencia a eles por direito.
A ideia de que alguma coisa, ou um lugar, é meu e me gera um direito imaterial, que garante que a tal coisa ou lugar continuem sendo minhas mesmo que por muito tempo longe de mim é uma elaborada construção humana.
Mais: é uma dispendiosa construção humana. O trabalho de manter esse direito à propriedade tem sido o mais difícil que civilização tem feito. E também, talvez, a maior prioridade da nossa organização social.
Um livro seminal na formação desta ideia na minha vida é Ismael, de Daniel Quinn. Na minha opinião, um romance que deveria ser lido na escola, pelos adolescentes cronicamente insatisfeitos. Ensina sobre tabu derrubando um tabu.
A trama é a seguinte: um homem de meia idade se depara com um anúncio em um jornal:
“PROFESSOR PROCURA ALUNO — DEVE TER UM DESEJO SINCERO DE SALVAR O MUNDO”.
O cara fica algo entre revoltado e curioso. Acha pretensioso o tom do tal professor, mas se vê compelido a dar uma conferida, certo que encontraria um charlatão encantando diversas almas perdidas.
Só que ao chegar ao local indicado no anúncio, não há ninguém. Quando está se conformando com o fato de que caíra em uma pegadinha, o homem percebe que há um vidro, e atrás do vidro, um gorila.
Então o gorila começa a falar com ele. Através da mente. Como é possível? Irrelevante, argumenta o gorila, não é para isso que eles estão lá. E a partir daí tem início as aulas mais fundamentais sobre condição humana que eu já vi. O gorila, que se chama Ismael, apresenta ao aluno a história da humanidade sob a sua perspectiva. Uma perspectiva não humana, uma perspectiva animal. Dos outros animais.
E é por conta deste distanciamento que Ismael é capaz de perceber que nossa civilização vive por uma história. Certos elementos que tomamos como naturais, óbvios ou até inevitáveis, são na verdade construções da humanidade, reforçadas por uma história que se conta sem se perceber e, portanto, sem alternativa.
“Ismael pensou um pouco.
— Dentre as pessoas de sua cultura, quais desejam destruir o mundo?
— Quais desejam destruir o mundo? Até onde eu saiba, ninguém especificamente deseja destruir o mundo.
— E, no entanto, o destroem, todos vocês. Cada um contribui diariamente para a destruição do mundo.
— Sim, é verdade.
— Por que não param?
— Francamente, não sabemos como.
— São cativos de um sistema civilizacional que mais ou menos os compele a prosseguir destruindo o mundo para continuarem vivendo.
— Sim, é o que parece.
— Portanto, são cativos e tornaram o próprio mundo um cativeiro.”
Faz mais de dez anos que eu li esse livro e, embora ele tenha — sem hipérbole — revolucionado a maneira como eu enxergo a realidade, lembro-me pouco dos detalhes. Posso confundir fatos com opiniões, então vou falar de que maneira a obra mexeu comigo, onde pegou.
O que eu entendi é que este cativeiro, este “sistema civilizacional que mais ou menos nos compele a prosseguir destruindo o mundo para continuarmos vivendo”, esta história que de tão reencenada parece fundamental é o nosso direito à propriedade.
Depois que o Ismael estabelece como nossa convicção de que somos donos da Terra para usá-la como bem entendermos é apenas um ponto de vista, ele apresenta a alternativa. Humanos que, historicamente, têm outra relação com as coisas e o espaço. Nomeia estes dois grupos como pegadores e largadores.
Entre os pegadores, provavelmente noventa e nove por cento da população atual, há esse imaginário de que tudo o que é natural existe para nos servir. É algo tão intricado em nós que pouco pensamos sobre isso. Um pedaço de terra, um território sem dono, pode ser livremente reclamado, e assim foi por eras, até que não houvesse mais territórios sem dono.
É uma noção bíblica. O mundo foi construído por Deus, mas o ser humano está acima de tudo para usá-lo (menos de Deus, obviamente). Só que não é só dos textos sagrados das principais religiões monoteístas que vem esta ideia.
Pouco depois de Ismael, eu li a Odisséia, do Homero. O timing dessas duas leituras foi fundamental na maneira como ressoou em mim o clássico grego. A história, uma epopéia, é um relato de proezas de um herói, o Odisseu (ou Ulisses para os romanos), que demora dez anos para conseguir enfim voltar para sua casa depois de ter ganhado a histórica guerra de tróia. Só que por conta das aulas do gorila no livro anterior, tudo o que eu consegui ler foi um conto de abuso, uma história sobre como somos arbitrariamente coercitivos há muito tempo. E, pior, uma valorização dessa atitude.
Odisseu era um herói. Uma definição aparentemente objetiva: ele cumpriu um grande feito heróico ao ganhar a guerra de tróia. Foi ele quem teve a ideia do cavalo. Só que ninguém ganha uma guerra sem a benção dos Deuses. Portanto ser herói é ser abençoado pelos deuses. Ou seja, a vitória de Odisseu revela que os deuses o distinguem dos demais seres humanos. Então ele não é herói porque ganhou a guerra, ele ganhou a guerra porque os deuses o consideravam um herói. No fim das contas, ele é herói porque os Deuses o dizem.
A partir deste reconhecimento, não é o que ele faz ou deixa de fazer que o torna um herói. Ele o é. Ponto. A vitória na guerra é apenas a evidência inquestionável de algo intrínseco ao Odisseu. Mas o pior é o que vem a seguir. Se ele é herói, bem como seus companheiros de batalha, eles têm direitos de herói. E quais são estes direitos? Pilhar as cidades dos derrotados e estuprar suas mulheres. Não há nada de errado com isso, os deuses indicaram aquelas pessoas, elas podem. São espólios de guerra, pertencem aos heróis.
Comecei falando de propriedade e agora estou falando de coerção. Não é a toa. Para que a propriedade exista, precisa-se que haja coerção. Para que meu Playstation 5 continue na minha casa, à minha disposição, mesmo que eu passe três meses em uma viajem, é necessária uma estrutura que impede que outras pessoas reclamem este objeto. Uma estrutura coercitiva, que impede, por meio de força, que alguém entre na minha casa, ou que depois do fato consumado se dispõe a punir o responsável e me ressarcir com a devolução do bem (em uma situação ideal, dentro do que nossas leis propõem, claro).
O mais interessante no Ismael é a maneira didática com que o gorila escancara nossos dogmas, nossos princípios inquestionáveis. Ele aponta que temos como natural uma lógica que, na verdade, é arbitrária. É natural que o ser humano tenha um território que seja seu. É natural que hajam brigas por território e recursos. É natural que precisemos defender nossos territórios e recursos diante dessas brigas. É natural que, se não houver manutenção do direito à propriedade, nos apropriaremos de tudo o que quisermos, mesmo que outra pessoa considere seu. O poder, para o ser humano, é uma necessidade, e a propriedade um direito natural.
Só que, segundo o Ismael, isto é uma lenda. A história dos pegadores foi contada repetidas vezes e há tanto tempo, uma narrativa que se tornou tão hegemônica, que não pensamos que alternativas sejam sequer possíveis. Mas elas existem, sempre existiram. São as histórias dos largadores. Perspectivas indígenas ou tribais que não compreendem o ser humano como dono. Que não entendem a necessidade de acúmulo, de poder sobre as coisas e as pessoas.
Aliás, é dessa lógica que vem o seguinte ditado "é preciso uma aldeia inteira para educar uma criança". Quem tem filho sabe o quanto isso é verdade. Na nossa lógica, a criança é algo como uma propriedade dos pais. Mas é um trabalho enlouquecedor para uma pessoa apenas. Mesmo para duas. Somente em uma lógica onde todos se responsabilizam, justamente porque não se tem o conceito de dono, entende-se que a educação é uma responsabilidade de todos. Não é a toa que no ditado usa-se “aldeia”.
Aqui imagino algumas pessoas reagindo com “ah, claro, em uma tribo, com oca, sem eletricidade, sem wifi, sem saneamento básico, é possível viver outra lógica. Mas ninguém quer abrir mão dos confortos da vida contemporânea, nem os índios!”.
Bom, pessoa imaginária, primeiro que se fala indígenas, segundo que… Não vou discutir. É claro que a maneira como vivemos é incompatível com o modelo dos largadores. Afinal, é a maneira construída pelos pegadores, a lógica deste ponto de vista. E à lógica dos largadores nunca foi permitido prosperar e evoluir livremente. A dos pegadores é um tipo de monocultura.
O que leva a outro argumento contra os largadores: a escassez deste modelo dos nos dias de hoje, sua supressão ao longo das eras, a porcentagem desprezível de pessoas vivendo desta forma, em comparação a forma dos pegadores, prova que é um modelo fracassado, um modelo que não pode prosperar.
Tá bom, mas…
A ideia de vitória e derrota, de sucesso e fracasso, não é também uma ideia relacionada ao poder? Sim, o modelo dos pegadores ganhou. Mas é um modelo competitivo, ao contrário do modelo largador. Ora, ao competir com alguém que não quer ou não sabe, ao obrigar o adversário a participar de um jogo que eu inventei, eu sempre vou ganhar. Ou melhor, a competição sempre vai ganhar. Porque ou o adversário se mantém sem competir, e perde, ou vai para a competição e se perde.
O monopólio do modelo coercitivo só prova que ele é competente em coagir. Nada mais.
Em Floresta é o nome do mundo — o nome em inglês é ainda mais legal: The word for world is forest — da Ursula K. Le Guin, a questão do apropriamento, da coerção e da colonização é colocada de maneira bem didática.
Uma colônia militar terrestre é estabelecida em um planeta chamado “Athshe”. Só que esse planeta não era inabitado. Os seres nativos pareciam símios e não impunham qualquer “respeito” aos colonizadores. Eram um povo completamente pacífico, que vivia da abundância de recursos do planeta ao qual eles se referiam com a mesma palavra que usavam para “floresta”. Para eles, planeta e floresta eram o mesmo conceito.
Mas tudo muda diante da intervenção terrestre. A própria instalação da colônia cria um ambiente completamente diferente do que os nativos conheciam. O planeta já não era uma grande floresta. Além disso, diante da beligerância dos invasores, os athsheanos e sua cultura vão sendo completamente subjugados. Sem lutar.
E não é, exatamente, por convicção. É só que brigar simplesmente não fazia parte do repertório daqueles seres. Aí o povo local acaba ficando diante de um dilema: ou eles se mantém fieis aos costumes e são aniquilados, ou eles se revoltam e reagem e o que é aniquilado é a essência de sua cultura. Dos dois jeitos, vence a lógica do poder.
Mais uma vez, porque só a lógica do poder está interessada em vencer.
Mas então estamos todos na merda? Condenados a viver neste cativeiro que aprendemos a chamar de civilização?
Agora vou fazer algo me matava de raiva quando eu assistia série, vou encerrar com um gancho. A vida é assim né, a gente envelhece e, ao menos em algum aspecto, se torna aquilo que odiava.
Mas é por um bom motivo. O ensaio está grande demais. Tenho coisas demais a falar sobre propriedade. Prometo que vou tentar fazer valer a pena.
Então…
To be continued…
M I C R O C O N T O
Flávia Alnazir e Telmo Tsuhan não gostam de serem chamados de gurus. Se sentem desconfortáveis com a ideia de que, talvez, o retiro que oferecem a todos que queiram encontrar paz interior esteja se transformando em uma seita. Argumentam que todo o princípio da chamada filosofia autodiretiva que criaram há trinta anos é exatamente sobre uma nova percepção do que significa autoridade, coerção, e propriedade. Mas, em não sendo donos de nada, nem responsáveis por ninguém, o casal se vê sem recursos filosóficos para mandar seus fiéis seguidores desfazerem o enorme altar que fizeram na estrada que leva até seu sítio em Extrema, Minas Gerais. Tampouco são capazes de impedir as milhares de barracas e lojas que vendem produtos com seus rostos e dizeres estampados por toda a cidade. “O único conforto é que sempre achamos paradoxos interessantes”, lamenta Alnazir.
muito bom! gostei muito do livro Os Despossuídos da Ursula K. Le Guin, tenho que ler Floresta é o Nome do Mundo, achei muito interessante sua análise sobre ele! Também vou colocar Ismael na minha lista.
valeu pela indicação do livro do quinn, vou atrás. texto massa ❤️