Nunca fui das pessoas que falam que o vilão é mais legal. A Cruella, a Úrsula, o Darth Vader, o Coringa ou o Venom, nunca foram mais importantes para mim que os dálmatas, a Ariel, o Luke, o Batman e o Homem-Aranha. Não que eles não fossem interessantes, mas… Eles faziam maldades, né? Isso me incomodava de sobremaneira.
Eu percebia que os vilões eram maneiros, estilosos, carismáticos. Até eventualmente conseguia notar que eram mais magnéticos do que os heróis. Mas sinceramente isso nunca foi apelo o suficiente. Era quase irrelevante se a pessoa é capaz de matar o próprio amigo. Como gostar de quem mata o próprio amigo?
Não sei quantos de vocês repararam mas este é um jeito recorrente de estabelecer o vilão: ele ferra o aliado. É o Darth Vader sufocando o oficial do império, o Coringa matando um capanga, ou vários. Os da Disney matam menos, mas eles sempre tratam seus coleguinhas com desprezo. Destruía o carisma para mim.
Só que, em algum momento, algo mudou. Recentemente me peguei consumindo séries com vilões como protagonistas, lendo livros cujos personagens principais são psicopatas. E estou adorando tudo. Por quê? E por que agora?
Acho que começou com os anti-heróis. Dom Vito Corleone e, principalmente (Dom) Michael Corleone de O Poderoso Chefão eram mafiosos, faziam o que fosse preciso para atingir seus objetivos. Quando dizemos “o que fosse preciso”, quase sempre estamos falando de assassinato mesmo. Mas eram figuras que não traíam os amigos próximos, que tinham algum tipo de código de conduta, que pensavam — ou pensavam que pensavam — no bem estar da família em primeiro lugar, tanto a próxima, de sangue e casamento, quanto a “família” no sentido mais amplo, a gangue da máfia.
O anti-herói tem — ou pensa que tem — algum tipo de código de conduta. Ele racionaliza seus atos porque considera seus objetivos decentes. Histórias de mafiosos e bandidos normalmente passam por aí. O Tony Soprano de Família Soprano recorrentemente relata à sua terapeuta que se entende como o general de um exército em uma guerra. Essencialmente, ele evita se deparar com sua própria corrupção, porque tudo é justificável. Ele só está cuidando dos seus, e isso é nobre.
O prefixo “anti” de anti-herói, é para eximir o personagem da moral elevada que se espera de um herói “puro”. Alguém realmente altruísta, que coloca o bem estar de outros sempre a frente do seu. Mas, narrativamente, o anti-herói exerce a mesma função do herói. Ele enfrenta desafios, é carismático, conquista nossa simpatia, e nós torcemos por ele praticamente sem restrições.
É portanto um meio do caminho entre o herói e o vilão. O anti-herói ocupa uma posição de privilégio, porque pode ter várias das características que tanto encantam nos vilões, um certo desprezo pelas regras, um humor mais ácido, uma paciência curta com amenidades, mas ainda ter gestos nobres pontuais, revelar algum tipo de afeto ou empatia, ganhar o respeito do público.
Inclusive existe um movimento de transformar vilões tradicionais em anti-heróis. O Venon dos quadrinhos originalmente era um vilão, um vilão de verdade, cruel e sanguinolento. No filme, é um animal furioso mas minimamente domesticado. O personagem tenta usar seu potencial para o bem.
O mesmo aconteceu com a Malévola, cuja história foi reinventada de modo que ela se tornasse uma vítima das circunstâncias. A Cruella também ganhou seu filme solo, mostrando uma origem que gera empatia, humanizando a personagem. Não vi o filme solo do Coringa, tenho certeza que é bom mas me recuso a ver o Coringa num mundo sem Batman. Pelo que sei, ele também é todo contextualizado, transformando o personagem em um tipo de vítima.
Entendo o movimento. Os vilões são atraentes, frequentemente roubam a cena. Faz sentido querer vê-los em uma situação onde o palco seja deles. Imagino que seja mais difícil criar uma história em que uma pessoa completamente má seja protagonista. Então é preciso atenuar seus traços, oferecer elementos de identificação com o público e principalmente nos fazer torcer por eles. E torcer para o mal é difícil, ou no mínimo controverso.
Mas, já no século XVI, um cara na Inglaterra conseguiu criar um protagonista vilão sem transformá-lo em anti-herói. Estou obviamente falando do Shakespeare. E o vilão é o personagem/título Ricardo III.
Eu conheci a trama da peça pelo filme com o Al Pacino, Ricardo III — Um Ensaio. É um documentário, mas com bastante dramaturgia. O Al Pacino quer montar Ricardo III nos Estados Unidos e o filme acompanha esta empreitada. Ao mesmo tempo, a história da peça vai sendo revelada e o espectador vai sendo apresentado a este homem, que é matreiro, cruel e perverso. Não é um anti-herói como o Michael Corleone, personagem que consagrou o Pacino. É um vilão completo.
Na trama o tal Ricardo é um nobre do século XV, o terceiro na linha de sucessão ao trono da Inglaterra. Com essa distância da coroa, Ricardo sabe que, naturalmente, nunca seria rei. Só que o personagem tem uma enorme sede de poder e seu coração é podre. Para piorar, o sujeito ainda é feio e manco. Como o público vai ter empatia por uma figura tão detestável? Não sei se o Shakespeare foi o primeiro a pensar nisso, mas é uma ideia inspirada: transformar a audiência em cúmplice. Como? Quebrando a quarta parede.
Vou explicar a quarta parede em poucas palavras, quem já conhece o conceito fique a vontade para pular para o próximo parágrafo. No teatro, em um palco convencional, existem três “paredes”, uma no fundo e uma de cada lado. É a “caixa” onde a atuação acontece. Mas assim como em uma casa de bonecas, há um buraco onde ficaria a quarta parece da sala, que é por onde a audiência assiste a peça. Assim, há uma parede imaginária ali, que existe na cena, mas não na realidade. Quando o personagem fala com a audiência, ele “quebra” esta quarta parede, ignorando a sua existência. Com o tempo a expressão foi ficando simbólica e é usada sempre que um personagem fala com o público, mesmo em um filme, onde ele olha para a câmera e o cenário é uma locação fechada.
Logo no início da peça Ricardo expõe seus desejos e toda a sua perversidade. Sabemos que ele é uma pessoa péssima e gananciosa, mas ele nos trata como amigos. Assim, nos sentimos parte dos seus planos e compelidos a torcer por ele. Ao longo da história ele permanece, de tempos em tempos, nos colocando a par de suas estratégias. Diz o que vai fazer, como as pessoas vão reagir, e o que vai acontecer em seguida. E tudo acontece como ele previu. Acho que não é spoiler contar que ele consegue, afinal, traçar um caminho para a coroa. Ele não se tornaria Ricardo TERCEIRO se não tivesse conseguido.
Não sei se alguém pescou, mas esta é também a trama de House of Cards, a primeira série original da Netflix lá em 2013 — que inclusive gerou aquele barulhinho da vinheta do serviço de streaming (tuduuuummm).
A semelhança com a peça não é à toa. A série é a versão estadunidense de uma série britânica, e a britânica foi criada a partir de Ricardo III. As obras são tão entrelaçadas, que o — agora cancelado — Kevin Spacey era o próprio Ricardo III numa montagem da peça quando foi escalado para o papel do Frank Underwood.
Frank Underwood é péssimo. É ganancioso, vingativo, implacável, sedento por poder, aniquila amigos e inimigos com um sorriso no rosto. Tem o charme e o carisma de um grande psicopata. Só que, assim como o Ricardo III, ele conversa com o público. Explica tim tim por tim tim cada um de seus movimentos, antes ou depois de executá-los. É um ser manipulador, que gosta de se vangloriar de sua sagacidade, e te convida a ter o mesmo prazer em ver as pessoas sendo usadas como marionetes.
Mas talvez o meu caminho para o encantamento com vilões tenha vindo antes, em uma série que usou outra estratégia. Breaking Bad é dessas histórias que deixa claro desde o começo onde quer chegar. O nome é uma expressão em inglês que pode ser traduzida para algo como “Virando Mau” (ou A química do Mal segundo a Record).
Assim, desde o começo sabemos que o protagonista vai se tornar um vilão. Ele não começa como um, e isso é uma excelente forma de nos manter interessados. Walter White é um pai de família, um professor de química de uma escola, que se descobre com câncer. Ao olhar para sua vida, percebe que, apesar de sempre ter seguido as regras e procurado ser um bom pai, esposo, profissional, tem muito pouco para deixar para seus entes queridos. Então ele tem uma ideia ousada: usar seus conhecimentos em química para fabricar e vender metanfetamina (aparentemente uma droga popular nos EUA).
Se estamos falando de como se constrói o fascínio pelos vilões, esta série é uma cartilha: Comece criando um personagem que gere empatia, o homem bom e trabalhador. Submeta-o à um infortúnio, o câncer. Transforme-o em vítima. Faça com que a audiência fique com raiva das circunstâncias que o vitimaram, no caso o desamparo material diante de uma doença, depois de uma vida de retidão moral. Agora, deixe-o quebrar regras, afinal, é tudo justificado, a vida não havia sido justa com ele antes. Neste ponto ele ainda não é um vilão, ainda está no ponto do anti-herói. Ele tem motivos nobres, vai cometer atos reprováveis, mas faz todo o sentido que o faça.
Só que anti-herói ainda é pouco. Ele precisa ser recorrentemente lembrado que ser honesto não compensa, que é necessário purgar o que restou de decência. O objetivo é que ele seja MAU. Mostre as consequências que quebrar as regras tem para a personalidade dele. Ele aprende a gostar da transgressão. Aos poucos vai se tornando outra pessoa, mas é alguém mais interessante. Alguém que vê o que quer e vai buscar, sem dar satisfação a ninguém. É algo sedutor, esta agência, esta maneira “descomplicada” de atingir os objetivos. O público já está fisgado, o caminho foi trilhado em conjunto. Agora, para selar o destino do personagem, faça com que ele cometa o ato que define um vilão e o separa definitivamente do anti-herói: a traição intencional de aliados.
Outro vilão cativante, sucesso de público e crítica como Walter White, é Tom Ripley, do livro O talentoso Ripley — ou da série Ripley, da Netflix. Este já começa como um trambiqueiro, alguém interessado em mais do que sempre teve, disposto a transgressões. Mas é um personagem inteligente e ousado, que se coloca em situações arriscadas e de um jeito ou de outro consegue tirar proveito, evoluindo em seu caminho para o mal ao longo da história. Assim como em Ricardo III, House of Cards ou Breaking Bad, nós sabemos o que se passa na cabeça dele. Vamos acompanhando seus planos e suas maquinações, sendo compelidos a torcer por ele.
É um personagem carismático, charmoso, agradável até. Ele só quer todas as facilidades que a vida de rico pode oferecer, algo muito fácil de se relacionar. Também é fácil se identificar com a ideia de que é injusto que muitos dos ricos que levam a vida de seus sonhos não fizeram nada para isso, além de nascer na família certa. Assim, vamos nos permitindo tolerar suas contravenções, que vão se sofisticando. Ele não começa com os maiores crimes, mas quando ele finalmente os comete, já estamos amaciados. Se não exatamente felizes com a perspectiva de que Tom Ripley atinja seus objetivos, estamos ao menos intrigados pensando como ele vai fazer para conseguir se safar.
Foi um dos três ou quatro livros que eu li na vida que me fisgaram na primeira página. Quando o livro é bom, costumo entrar na fase da leitura voraz só depois da metade, mas com esse foi instantâneo. O romance deu tão certo quando foi lançado em 1955 que gerou um tanto de adaptações e sequências. Recentemente li o segundo da série e, se a trama já não é tão envolvente, o carisma do protagonista continua inabalável. Bons vilões são carismáticos, não há como negar.
O Batman é famoso por ter a melhor e mais carismática galeria de vilões da cultura pop.
As personificações do Coringa são, quase todas, memoráveis. Mas o personagem que vem ganhando atenção nas adaptações mais recentes é o Pinguim. Ele aparece em poucas cenas em Batman de 2022, o suficiente para deixar a audiência embasbacada. Uma parte do impacto se deve à caracterização estarrecedora do Colin Farrell, junto com a interpretação, o jeito de andar e a voz estranha. Juro, eu assistiria esse personagem lendo uma lista telefônica inteira só pra ficar pensando “caceta, não acredito que é o Colin Farrell mesmo”.
Mas além disso é um personagem envolvente. Feio, mas com carisma. Ele fala manso, tem uma pegada de mafioso italiano, ao mesmo tempo que realmente lembra um pinguim. É uma figura magnética. Deu tão certo que ganhou a própria série, situada logo depois dos eventos do filme.
E que série! Na trama, após os eventos de Batman há um vácuo de poder no submundo de Gothan City, e o Oz Cobb (diminutivo de Oswald Cobblepot, o Pinguim) quer ser o novo chefe do crime na cidade. No filme ele já havia caguetado alguns aliados e na série vemos que trata-se de um psicopata completo, capaz de entregar quem quer que seja se significar sucesso naquilo que busca. Ao mesmo tempo é um sujeito carente, que em certos momentos parece em busca de amor. Um psicopata carente, e as vezes eu só queria ampará-lo, mesmo sabendo que ele provavelmente me mataria assim que eu virasse de costas.
No meio da série o Pinguim tem uma conversa com um coadjuvante importante. É um adolescente que o vilão resolve acolher e ensinar os caminhos no crime. Só que este rapaz, o Victor, até pouco tempo era um bom menino, tinha família, um pai e uma mãe honestos. Perdera tudo mas ainda tinha as bases de sua criação e hesitava em abraçar de vez a ideia de se tornar um criminoso.
Neste momento de dúvida o Pinguim tem uma conversa com ele, provavelmente a semente para que eu quisesse escrever este texto. Eles estão em um restaurante chique, e Vic diz que seu falecido pai teria adorado comer lá. Oz pergunta o que o pai fazia da vida, e o rapaz diz que era mecânico, e que nunca tinha pisado em um lugar daqueles. Então Oz diz que é injusto, que o tal pai mecânico deveria ter tido muito mais. E fala algo difícil de contestar: o mundo não é feito pra gente honesta se dar bem.
É uma frase de efeito, proferida em um momento específico da série, mas está por trás de cada uma das ações do Pinguim. Este é o espírito do programa. Não acho que seja exagero entender o que o personagem diz como: a meritocracia é uma mentira. Mais adiante esta questão fica ainda mais sofisticada, na medida em que Oz procura as pessoas que são negligenciadas no próprio submundo do crime, os capangas genéricos, instigando-os a irem atrás de mais do que recebem, como se apontasse que o próprio crime não é meritocrático.
“O mundo não é feito pra gente honesta se dar bem.”
Não sei se é só dentro da minha bolha, mas me parece que nos últimos anos esta reflexão está finalmente alcançando o senso comum. Estamos discutindo jornada de trabalho, e a perspectiva de mais dias de descanso está ganhando um verniz talvez inédito de legitimidade. A virtude do trabalho, como o entendemos, está sendo questionada.
Tenho a impressão que a geração nascida entre os anos quarenta e setenta considerava ter encontrado o sucesso se tivesse um emprego estável em uma empresa onde pudesse trabalhar por anos, progredindo no organograma. O trabalho precisava ser uma prioridade e era a única maneira de levar uma vida digna.
Mas em conversas com pessoas da minha geração (millennials) frequentemente observamos como somos diferentes, particularmente em relação ao trabalho. Olhamos para pessoas mais velhas que atingiram a ideia que se fazia de “bem sucedido” em uma empresa, e é uma perspectiva que não nos atrai nem um pouco.
É comum a impressão de que são pessoas que têm dinheiro, ok, podem viajar para o exterior talvez uma vez por ano, colocar os filhos em boas escolas, talvez ter uma casa no interior ou na praia para passar férias e feriados. Mas a que custo? De perto, sinceramente, parecem felizes? Ou vivem exaustas, física e/ou emocionalmente? Se você tem um emprego CLT, procure alguém que atingiu um lugar de prestígio na empresa (precisa ter atingido, não vale ter caído de paraquedas porque é filho do dono ou indicado de fora). Esta pessoa parece realizada?
E, ainda que tenha dinheiro, ela é realmente rica? Em termos de patrimônio, ela está mais próxima de quem ganha um salário mínimo, ou de um multimilionário (sem mencionar bilionários)? E os multimilionários ou bilionários, via de regra, o são por que seguiram um plano de carreira? Ou porque herdaram?
Ou, mais interessante ainda, porque têm uma ética turva, que talvez, só talvez, lembre a do Pinguim? Como o Pinguim, o Zé Pequeno, o Ripley e tantos outros psicopatas seriam percebidos pela sociedade se tivessem nascido herdeiros? Será que daria para notar seus traços perversos? Ou eles seriam CEOs de sucesso nas suas empresas? Será que eles não seriam aplaudidos e reverenciados justamente por suas mentes disruptivas?
Afinal, há algo de sedutor em pessoas que não seguem regras, elas exercem um certo fascínio. Pensando em todos estes fatos fictícios, tenho tido a impressão que é um fascínio aparentado com aquele que temos por barracos, brigas na rua ou no BBB. Estamos vendo gente existindo e agindo fora das normas sociais, fora do nosso padrão de civilidade. E por que isso é tão interessante?
Será que não é porque a gente sabe que vive em uma abstração arbitrária e completamente artificial? O mundo é cheio de regras inquebráveis mas quase tudo o que consideramos importante só é real se considerarmos real. O que é uma nota de dinheiro? Um pedaço de papel que representa um valor abstrato, não intrínseco a ela. Este mesmo valor abstrato pode ser o saldo da nossa conta no banco. Um número que diz exatamente a porção da realidade material à qual temos direito.
O próprio direito é uma abstração. Um conjunto de normas escritas que só valem alguma coisa porque uma maioria das pessoas na nossa sociedade as legitima. E, claro, porque existe uma estrutura coercitiva disposta a usar a força para garantir isso. Mas, ao menos nas democracias, sistemas que se pretendem justos, esta estrutura não funciona sozinha.
Eu vou para o meu trabalho todos os dias por respeito a uma abstração. Um contrato que eu assinei, que é uma frágil evidência material de um combinado imaterial que garante que, se eu cumprir tudo direitinho, no fim do mês vou receber outro tipo de abstração.
A gente vive, sofre e morre por abstrações, cujas existências só se sustentam porque há gente suficiente acreditando nelas. Um humano pré-histórico (ou de um futuro utópico sem propriedade) precisaria de tempo para entender várias de nossas lógicas, várias de nossas prioridades.
Talvez o vilão, ou mesmo o anti-herói, nos fascinem porque em algum nível achamos que faz sentido chutar o balde. Talvez tenhamos vontade de fazer isso de vez em quando. “O mundo não é feito para gente honesta se dar bem”, só que as engrenagens que mantém a sociedade funcionando, desta forma injusta, são fracas. Dependem da nossa aquiescência cotidiana, do nosso recorrente “aceite” aos termos. Há coerção para nos manter na linha, ok, mas mesmo a coerção não é capaz de dar conta de TODOS, mesmo a coerção supõe uma maioria complacente. Sabemos que para romper com tudo, basta querer. E, talvez, seja catártico ver quem o faz.
E isto vale para os vilões, os anti-heróis, e os barraqueiros do BBB. Personagens que jogam às favas as normas sociais que nos regulam e nos oprimem.
Mas por que eu gosto de ver um barraco mas fico desconfortável em participar de um? Por que eu reconheço a validade do argumento do Pinguim, sinto prazer em vê-lo tendo sucesso, e ainda assim prefiro andar na linha? Por que, quando se trata da minha vida, eu escolho seguir as regras?
Primeiro porque existem consequências. Elas podem ser criminais, no caso do Pinguim, ou sociais, no caso de um barraco. Abrir mão da civilidade em público pode ser constrangedor para quem o faz. É prazeiroso assistir porque não está acontecendo comigo, eu não vou ter que lidar com nada. No que concerne somente a mim, é inconsequente.
Além disso, podemos até sentir alguma satisfação em ver alguém indo na contramão da sociedade, mas sabemos que, no limite, se todos agissem assim, seria o fim da civilização como a conhecemos. E por mais que estejamos frustrados com a nossa configuração, sabemos que qualquer forma de organização social depende da boa vontade de seus partícipes. E suspeito que muito poucos realmente gostariam de viver fora de alguma organização social. A “selvageria” não é atraente. É o retrato da distopia.
Mas, ainda mais importante, não rompemos com tudo porque muitos de nós temos ética. Existe algo anterior, em termos de prioridade, aos combinados e às normas, e é o nosso próprio julgamento do que é certo e errado. Ainda que amanhã algum deputado consiga legalizar o assassinato de criancinhas, eu (e acho que a maior parte de nós), não sairia matando criancinhas. Não me interessa quais são as regras. Eu. Não. Mato. Criancinhas.
Os anti-heróis e principalmente os vilões nos oferecem esta janela para as possibilidades mais destrutivas. São capazes de provocar catarses, nos dando a chance de sentir o prazer em jogar para o alto a frágil organização social à qual estamos submetidos, sem ter que realmente fazê-lo, sem termos que de fato lidar com o que aconteceria a partir disso.
O mundo não é justo. Aliás, até nossa ideia de justiça é uma invenção humana. Me parece que até há na natureza uma tendência a um tipo de equilíbrio, mas é um equilíbrio que está muito pouco interessado em nosso senso de justiça. Um equilíbrio que nos eliminaria da face da terra sem nenhum constrangimento — e que talvez o faça. O mundo não é justo, e este é um aprendizado importante para qualquer amadurecimento.
Quero acreditar que, por mais que vivamos tempos tensos, a humanidade está amadurecendo. Aliás, quero acreditar que isto é o que ela vem fazendo desde o começo, ainda que aos solavancos. Penso que estamos, de uma forma geral, mais atentos às injustiças da nossa sociedade hoje do que estávamos há vinte ou trinta anos. Certamente estamos mais atentos do que estávamos há cem. Talvez, quanto mais atentos vamos ficando às injustiças, mais interessados vamos nos tornando em personagens injustiçados. E talvez haja alguma justiça em vê-los triunfando, passando por cima de tudo. Mesmo às custas da integridade ética.
Sendo sincero, acho que ainda prefiro a alternativa. Ainda fico mais fascinado pelo herói, o personagem decente, no trabalho que ele tem para enfrentar algumas das mesmas injustiças sem comprometer seu caráter. Talvez nem seja por virtuosismo meu, é possível que eu só ache um quebra-cabeça mais interessante mesmo. Mais complexo. Dá muito mais trabalho ser ético, e estas histórias, quando bem feitas, também são catárticas, também inspiram.
Mas existem dias em que não tenho paciência ou esperança. Quando eu olho ao redor e nos enxergo em um caminho sem volta. Quando estou exausto de tudo e de todos, e começo a achar o apocalipse climático ou uma invasão alienígena fulminante eventos interessantes e desejáveis.
Nestes dias, o mal se torna irresistível.
M I C R O C O N T O
Valnino Latista não é uma pessoa discreta. Anda sempre com uma roupa laranja, como se quisesse que todos soubessem que trata-se de um dos maiores citrotraficantes da história. Latista não se vê como um criminoso, apesar das inúmeras mortes e chacinas atribuídas aos Burgerios, grupo do qual é tido como líder. Quando questionado, desconversa. Defende que é um militante, que os maiores problemas das laranjas e outras frutas cítricas é exatamente a sua proibição pelo estado. Que, eliminada a criminalização das substâncias, os malefícios não superam, de modo algum, os benefícios que esses frutos trariam. “Além disso, as pessoas já usam laranjas. Eu não seria o que eu sou se não usassem”, defende. “A guerra aos cítricos acabou. Os cítricos venceram.”
O texto é muito bom... sei lá, gostei muito. Já li varias materias sobre a discussão vilões, anti-heróis e tal, mas esse aqui de você é, de longe, o melhor. Parabéns!