Eu sempre quis ser um super-herói. Não fosse um lado meu conformado com as coisas do mundo, esta teria sido minha carreira de escolha. Claro, eu precisaria ter algum super-poder, muito dinheiro, ou habilidades excepcionais. Não tenho nada disso, a não ser talvez a habilidade excepcional de fazer uma boa picanha no churrasco.
Como não pude me tornar, consumi tudo o que pude sobre o tema. Com o tempo, passei a, para além de me entreter, estudar o assunto. Entendi que o conceito de super-herói nada mais é do que um rebranding de algo tão antigo quanto nosso hábito de contar histórias: o herói. Ele é um ideal, alguém que carrega os princípios mais elevados da cultura na qual ele foi criado. É distinguido das pessoas normais, que também poderiam ter princípios elevados, pelos seus grandes feitos. É o feito heroico que forja o herói, que o coloca nesta posição à parte do resto da humanidade.
Mas o que constitui um feito heroico?
Diferentes culturas trazem diferentes respostas. Mas existe uma pessoa que se aprofundou nos estudos de diferentes mitos e enxergou algumas relações entre eles. Ele chamou esse padrão, comum a diferentes culturas de A Jornada do Herói, ou Monomito. Seu nome era Joseph Campbell, e ele percebeu que essa figura era recorrente nas histórias que se contavam pelo mundo, assim como o caminho que ela precisava fazer para se tornar um Herói. Seu principal trabalho é o livro Herói de Mil Faces, que eu tentei ler mas achei insuportavelmente chato. Bem mais legal é a entrevista que ele deu nos anos oitenta e que também virou um livro chamado O Poder do Mito.
Os principais elementos notados por Campbell são, hoje, muito conhecidos e se repetem nas mais diferentes narrativas heroicas, dos contos arturianos ao Homem de Ferro da Marvel, passando por Senhor dos Anéis, Star Wars, Matrix, Harry Potter e Jogos Vorazes.
Só para ilustrar alguns: o protagonista é órfão, recebe um chamado para a aventura, encontra um mestre — alguém de imensa sabedoria mas que se envolve menos na ação —, acaba transportado para um mundo fantástico no qual ele é capaz de fazer algo que ninguém mais consegue, o que lhe confere um aspecto ilustre. Passa por testes recorrentes de suas habilidades, encontra parceiros e, por fim cumpre o seu destino e se torna um herói de fato.
Os elementos mudam, pode até faltar um ou outro, mas a estrutura de boa parte dessas histórias é a mesma. Hoje, a jornada do herói é aplicada até a histórias sobre situações mundanas. Em Legalmente Loira, vemos a protagonista prosperar na universidade em um ambiente que, comparado à realidade cotidiana de patricinha dela, poderia ser entendido com fantástico. Muito parecida é a jornada de Jamal, um jovem negro de um bairro pobre da Philadelfia que se revela um autor de primeira categoria na universidade sob a orientação do Sean Connery em Encontrando Forrester. Em O Grande Hotel Budapeste, Zero também cumpre este papel, desarticulando um golpe, com Ralph Fiennes fazendo as vezes do mestre.
Ao mudar os elementos, é possível criar uma infinidade de histórias dentro dessa estrutura. E, sinceramente, eu amaria todas.
Mas o problema de uma lógica hegemônica é que ela causa a impressão de que é natural, ou até neutra, quando pode ser apenas… Hegemônica.
Existe algo na jornada do herói, e factualmente na maior parte dessas histórias, que pode passar despercebido mas é quase arbitrário. Os heróis são sempre vítimas. Ele é coagido, por pessoas ou situações, a entrar nesta jornada. Um fardo a ser carregado. Quase sempre, inclusive, ele tem um momento de relutância, de querer fugir da responsabilidade. O herói é alguém que responde à altura dos desafios que lhe são impostos, mas ele precisa ser provocado, desafiado.
Os tios do Luke Skywalker precisam morrer para que ele vá para o espaço, os pais do Bruce Wayne, do Harry Potter, o tio do Homem-Aranha… O Frodo já é um orfão, mas ele herda o anel, algo acontece à ele. Trinity e Morpheus vão até Neo, e este só aceita depois de recusar e conhecer o Agente Smith. Katniss Everdeen se voluntaria para os Jogos Vorazes para evitar que a irmã, sorteada, vá. Eles não são, ao menos inicialmente, agentes de seus destinos. O herói é vítima. Uma que resolve reagir, mas ainda assim, primeiro, uma vítima das circunstâncias.
A Jornada Do Herói descrita pelo Campbell é uma estrutura básica que transborda as epopeias e os heróis e serve de fundamento para o que parece ser a forma mais comum de contar histórias. E essa forma é centrada no conflito. Algo acontece, que deflagra uma situação, que precisa ser resolvida. A resolução da situação é a história. Em Ilíada, Helena é levada pelos troianos e precisa ser resgatada. Em Odisseia, Odisseu está longe de casa e precisa retornar, apesar dos obstáculos impostos pelos deuses com ciúmes da predileção de Atena por ele. Em Titanic, primeiro Jack precisa lutar contra a pobreza e Rose contra a rigidez dos papeis, e depois a trama encontra um obstáculo externo literal, um iceberg, que transforma toda a história e todos precisam lutar contra as consequências dessa interferência.
Esse tipo de trama, baseado no conflito externo, é tão comum que muitas vezes parece fundamental. Mas, depois de alguma pesquisa, consegui entender que o modelo só é hegemônico no ocidente. Ou seja, não é hegemônico coisa nenhuma. Ou seja, o Campbell só descreveu a estrutura de uma grosseira metade das histórias do mundo.
Não me considero um especialista nas narrativas orientais, nem sou profundo conhecedor do cinema chinês, japonês, coreano ou indiano. Mas, escrevendo este texto, não pude deixar de lembrar de um filme específico que parece incrivelmente pertinente.
O nome do filme é Herói.
É um filme de 2005 do Zhang Yimou. O herói do filme é o Jet Li, um guerreiro sem nome em uma China antes da unificação e do muro, dividida em sete províncias. Ele consegue uma audiência com o Rei de Qin, o mais poderoso dos sete reinos, e que está ganhando a guerra entre eles todos. O filme inteiro acontece durante esta audiência.
O encontro era uma recompensa ao guerreiro por ele ter matado alguns dos principais inimigos do Rei. A conversa é cheia de flashbacks e idas e vindas, com os dois personagens comparando possíveis versões sobre como essas mortes se deram, e quais seriam as motivações do guerreiro. Ainda assim a trama é magnética e cheia de viradas, além do desbunde visual, que é um diferencial de um filme genial. Ao fim, não restam dúvidas sobre como este personagem é, de fato, um herói. Mas um herói indiferente aos modelos tradicionais do ocidente.
O que se mantém: é um personagem capaz de grandes feitos, feitos diferenciados e exclusivos. Ele tem moral elevada e coloca seu talento a serviço do que é tido como “bem”. No entanto, o guerreiro Sem Nome não é uma vítima das circunstâncias. A necessidade de usar essas habilidades não cai em seu colo e tampouco ele é relutante. O guerreiro é agente nesta história. E a história é precisamente sobre suas motivações, suas crises internas. Por isso o filme todo se passa dentro da cabeça dos personagens. Não estou dizendo que é uma história livre de conflitos, mas definitivamente não são eles os principais catalisadores da trama. A jornada deste herói é interna. Ao fim do filme, é colocado didaticamente sobre o que é aquele conto: intenções.
Então a jornada do herói ocidental é construída através de conflitos externos, e a do oriental de conflitos internos?
O mundo não é binário desta forma. Existem contos orientais baseados em conflitos e ocidentais baseados em motivações. Quando penso nesta dicotomia, não consigo evitar de fazer a velha comparação nérdica: Star Wars e Star Trek.
Os próprios nomes já dão a dica da diferença que estou interessado em apontar: Guerra nas Estrelas e Jornada nas Estrelas. O primeiro é literalmente sobre um conflito e o segundo é literalmente sobre viagens. Enquanto Star Wars define e é definido pelo modelo notado por Campbell, Star Trek atende a muitos dos quesitos das tramas orientais.
Embora os episódios apresentem temas aventurescos, recheados de conflitos, é tudo circunstancial, e a série sempre tende a voltar ao seu cerne que é exatamente a curiosidade como combustível da busca por aventuras. A preocupação maior de Star Trek é sustentar essas motivações, colocando-as a prova com questões inquietantes. Se a morte de uma boa pessoa pode salvar um povo, deixá-la morrer é uma escolha válida? Como seria a humanidade se o fascismo houvesse perseverado? É correto, tendo o poder de interferir, deixar uma atrocidade seguir por ser um traço cultural?
Existem narrativas que misturam ambas as perspectivas. Em uma era cada vez mais conectada, as culturas estão casando e dando a luz a novas culturas. Existem histórias deliciosas que combinam os melhores traços das tradições mais diversas entre si. A séria animada Avatar - a lenda de Aang é um bom exemplo deste encontro: as culturas apresentadas, o traço e boa parte dos temas tem evidente influencia do oriente, mas a trama tem uma estrutura bastante amparada na jornada do herói ocidental. A série é de produção estadunidense.
Mas o que me inquieta mesmo é o que esses modelos tradicionais podem nos contar sobre os valores fundamentais dessas duas matrizes culturais. Se, por um lado, o oriente parece interessado em ação, o ocidente parece interessado em reação. A verossimilhança, para nós ocidentais, parece estar em motivos externos.
Esta hipótese começou a me assombrar ao perceber uma escolha curiosa na adaptação para a tevê de um livro que eu li recentemente. Como não consigo evitar de fazer, assisti comparando a adaptação ao material original. O que primeiro chamou minha atenção foi a preocupação que a série parecia ter com fundamentar “melhor” as motivações dos personagens. E por fundamentar, quero dizer criar motivações mais individualistas.
O livro em questão é Periféricos, do William Gibson, que ganhou uma série de mesmo nome no Prime Video. Vou tentar dar um exemplo recortado, que, espero, não seja um grande spoiler. Os periféricos são corpos robóticos que as pessoas, num determinado contexto, conseguem acessar remotamente. Flynne, a protagonista, ganha um desses corpos para uma missão. Pouco tempo depois Conner, um amigo seu, também ganha um periférico para ajuda-la. A diferença entre o livro e a série está em como ele entra nessa empreitada. É sutil, mas acho que revela muito.
A questão é que Conner tem as pernas amputadas. No livro, Flynne, por conta própria, tem a ideia de pedir um periférico para este amigo, e bate o pé nesta condição para seguir na missão. Ele não era necessariamente seu melhor amigo e também não era o seu irmão (que também fazia parte da equipe). Então por que exatamente Conner seria o primeiro, além dela, a receber um corpo periférico?
O que fica entendido é que ela pensou neste homem, justamente para que ele pudesse voltar a andar, ainda que remotamente. Qual a motivação de Flynne? Nenhuma, além de ser atenciosa com um amigo e colega.
Mas, na série, Conner sozinho vê na ideia dos periféricos a chance de voltar a andar. Ele inclusive usa o aparato de Flynne, quando ela não está, de modo que a protagonista nem toma conhecimento do que está acontecendo. É o amputado que age, impelido pela sua limitação. Flynne não participa.
Em uma versão da história é a generosidade interna da protagonista impulsiona a ação. Na outra é o acidente que a vítima sofrera anos antes, e do qual ela nunca se recuperara. O que me chama a atenção aqui é que se trata de um trabalho de adaptação. Uma decisão foi tomada para alterar um elemento da história. Por que? Por que este elemento específico?
A resposta simples e óbvia seria verossimilhança, sempre ela. Alguém na equipe criativa da série parece acreditar que motivações autocentradas são mais críveis que altruístas.
Se for verdade o que isso diz sobre os espectadores? Não somos capazes de acreditar em generosidade desinteressada? Não vemos isso nos nossos microcosmos, com as pessoas ao nosso redor? Ou será que leitores são menos cínicos que o público da TV?
Mais: só agimos se for para sair de um apuro ou em nome de uma recompensa externa?
No futuro de Star Trek o dinheiro perdeu a função de ser. As pessoas estão estagnadas? Não, elas buscam o auto aperfeiçoamento apenas porque é uma recompensa por si só.
Enquanto essas histórias forem inverossímeis, talvez estejamos fadados às eternas reações.
adorei como vc trouxe exemplos de filme que num primeiro momento não ligaríamos com a jornada do herói ;) ficou claro que a estrutura está por todo canto mesmo!
e gostei muito de saber a diferença dessa jornada nas produções ocidentais e orientais. preciso demais ver Herói \o/