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(anteriormente, em baseado em fatos fictícios)
Meu professor da oitava série provou pra gente que tabu existia porque a gente não pode pensar em transar com os pais. Mas o maior tabu que existe hoje em dia é propriedade, e não só a privada. Ismael é o livro que me mostrou que nossa ideia de que tudo pode ser possuído é uma construção social, criada pelas pessoas que o gorila Ismael (o professor no livro) chama de pegadores. Esta lógica é dispendiosa e nos aprisiona e a civilização é um cativeiro. A Odisséia é um exemplo de como existem pegadores há muito tempo, e hoje é quase a única lógica vigente. Mas existem largadores, que têm outra relação com propriedade e coerção. Largadores perdem e são perdedores porque não funcionam na lógica de vitória e poder. Essa é mais ou menos a história do Floresta é o nome do mundo, da gênia Ursula K. Le Guin, um romance sobre a colonização do planeta Atshe e como os seus nativos, um povo pacifico, são colocados diante de um dilema. Diante da coerção ou são dizimados, ou reagem e o que é dizimada é sua cultura de paz.
Mas então estamos todos na merda? Condenados a viver neste cativeiro que aprendemos a chamar de civilização?
Primeiro que sim, claro. Minha impressão é que qualquer ser humano que queira romper hoje com a lógica dos pegadores está diante do mesmo dilema que os athsheanos. É um paradoxo: precisaríamos de uma ruptura, mas é difícil imaginar romper com um sistema coercitivo sem usar coerção. E se usarmos mais coerção, estaremos realmente rompendo com o sistema coercitivo?
É imprescindível manter e preservar os largadores que ainda existem no mundo. Eles são um lembrete permanente de outras possibilidades, de outra maneira de enxergar as relações. Mas ainda assim, para que os indígenas possam usar um espaço como se ele não tivesse dono, esse espaço precisa ser demarcado e a propriedade precisa ser reconhecida como deles. Mais um paradoxo, ou talvez o mesmo.
Mas, se minha esperança para nossa geração e a dos nossos filhos e netos está atrofiada, se eu não vejo como viver de outra forma ao menos nas próximas décadas, ainda tenho algum fio de otimismo para o futuro distante. Inspirado, claro, em fatos fictícios.
Já devo ter dito, mas vale sempre repetir: Ursula K. Le Guin é leitura fundamental para qualquer ser humano. É minha autora favorita da vida, mas Floresta é o nome do mundo é provavelmente seu livro mais sombrio. A Ursula é, via de regra, uma autora otimista. Ela desce aos porões das almas e das culturas, mas sempre encontra um jeito de subir novamente, de apontar uma porta ou ao menos uma janela. Não em Floresta é o nome do mundo. Desculpem o spoiler.
Mas talvez ela o faça em outro livro, um de seus maiores sucessos e meu livro favorito da vida (junto com seu irmão espiritual). Estou falando de Os despossuídos.
Como a maior parte dos livros da Ursula, em Os Despossuídos o leitor já começa inserido em um universo estranho, com regras inusitadas. Não estamos na Terra, e a lógica não é humana. São leituras que demandam uma insistência inicial, uma aceitação do nosso lugar de ignorância, um desprendimento daquilo que tomamos como normal. Então, pouco a pouco, vamos nos situando nesta outra realidade e conseguindo nos sentir parte dela. No caso deste livro, o início é todo dedicado ao único muro que existia no planeta. Sobre como a ideia de muro era estranha àquela gente.
Na verdade não se trata de um planeta. Anarres é uma lua do planeta Urras. Mas, apesar de estéril, o satélite tem atmosfera e é habitável. Lá vive há duzentos anos um povo exilado, que quis romper com as lógicas convencionais de poder do planeta original. Anarres é a versão da Ursula de uma utopia anarquista, ainda que eu não me lembre de a palavra anarquismo ser sequer mencionada no livro.
O protagonista, Shevek — eu e minha esposa consideramos dar este nome a nosso filho, mas não tivemos coragem suficiente para enfrentar a sociedade contemporânea — é um cientista que, por diversas razões, é a primeira pessoa a sair de Anarres para visitar Urras desde a revolução. O livro passeia por dois tempos: no presente Shevek está descobrindo a cultura do planeta original, que tem uma lógica parecida com a nossa, e no passado, com memórias do crescimento do personagem na lua, através das quais somos apresentados a uma cultura sem coerção, hierarquia ou posses. Um mundo de largadores. De despossuídos.
Aliás, sobre o título, achei interessante a tradução em português para DESPOSSUÍDOS. Em inglês é The Dispossessed, mas em portugal é Os Despojados. Essa diferença é interessante, porque o sentido da expressão, depois de ler o livro, é claramente “pessoas sem posses”. Assim, despojados talvez fosse mais apropriado do que despossuídos, que remete a “não-possuídos”, ou seja, que não SÃO posses.
Só que isso me levou a uma reflexão. Possuir não é automaticamente e sempre também ser possuído? A manutenção da posse e da propriedade, inclusive como aponta o gorila Ismael, demanda energia, uma energia aprisionadora. Desta forma o dono é cativo daquilo que possui, como o dragão proverbial que nunca sai de cima do tesouro proverbial dentro da caverna proverbial para não perdê-lo. Os Despossuídos não são posses porque não têm posses.
O livro tem um subtítulo em inglês: The Dispossessed: An Ambiguous Utopia, “uma utopia ambígua”. A utopia é, claro, Anarres. A ambiguidade acontece porque a sociedade imaginada não é exatamente perfeita. Ursula é tão genial que, ao falar de anarquismo, não quis focar na parte da revolução. Não interessou a ela contar como romper com as lógicas de posse e poder, mas conjecturar o que faríamos uma vez que isso estivesse consolidado. Duzentos anos depois. O anarquismo dos despossuídos é velho, está sedimentado e internalizado. Que tipo de vícios existiriam em uma sociedade que há dois séculos vive sem hierarquia e sem propriedade?
De uma forma geral, Shevek nota que as hierarquias continuam existindo em Anarres. O que se pode eliminar foi a institucionalização delas, assim como com as coerções. Mas tanto uma quanto outra continuam acontecendo, só que socialmente, de forma informal. Aqui o ser conservador é um conservador do anarquismo. O velho reaça médio defende que na época dele as pessoas tinham menos apego. E as pessoas com as mentes menos arejadas são as que fiscalizam os outros para que não egoizem — um neologismo maravilhoso que eu tento aplicar na vida e significa dar ouvidos ao ego.
Mas não é uma história de “como a revolução daria errado no fim”. É um inspirado exercício de imaginação, como poucos, para tentar entender de maneira abrangente uma possibilidade de utopia. Por causa da bifurcação na trama entre passado e presente, a história compara os vícios dos habitantes de Anarres com os dos moradores de Urras, quase como se afirmasse que vícios sempre acontecerão. E que existem vícios e vícios.
Eu penso em Anarres dia sim, dia não. A dificuldade inicial do leitor em se situar nos universos da Ursula é compensada — e talvez justamente por causa do esforço — por uma sensação de verossimilhança. Anarres é tangível para mim, possível, completamente alcançável, ainda que apenas no longo prazo. Sem falar que esta sociedade imaginária se desenvolve em um ambiente inóspito, infértil. Como seria em um ambiente fértil como o planeta terra?
É uma história sobre uma utopia — ainda que ambígua. Sou ávido por utopias, e elas me parecem rarear na literatura e na ficção de forma geral. Vou cometer a heresia de fazer uma afirmação sem dados, mas tenho certeza que existe no mínimo três vezes mais histórias de distopias do que de utopias. E estou sendo generoso. A discussão sobre o interesse maior em distopias do que em utopias vale um ensaio exclusivo, mas estou comentando agora porque foi a busca pelas poucas utopias que me levou à fonte original: o livro Utopia, do Thomas More.
Sinceramente, acho que é uma leitura hermética, para interessados em filosofia ou apenas curiosos. O livro praticamente não tem história. Não quero penalizar o autor, já que o texto é do século XVI, muito tempo antes da consolidação do romance como gênero literário. O cara não sabia que precisava de uma narrativa interessante.
Ao invés disso, ele se insere na trama e conta sobre como teria ouvido relatos de outro homem, um tal de Rafael Hitlodeu que conhecera a misteriosa ilha de Utopia. Então o texto acompanha as descrições do viajante Rafael sobre esta sociedade. Um grande relatório sobre um país que o Thomas More parece evitar cravar ser fictício.
Quando li Utopia — o que aliás faz pouco tempo — eu já tinha lido todos os outros livros que mencionei neste ensaio. Foi uma grata surpresa perceber que a característica primordial e revolucionária desta, que é a mãe das sociedades ideais, é justamente… O fim da propriedade.
“(...) meu pensamento volta-se para as santas instituições dos utopianos, que são tão bem governados com tão poucas leis. Entre eles, a virtude é recompensada e a divisão igualitária dos bens permite a cada um viver na abundância. Eu vejo o contraste dessas instituições com as de muitas nações nas quais, constantemente, são produzidas novas leis mas que jamais conseguem manejar seus problemas de forma satisfatória. Nessas nações, sempre que alguém obtém algo, imediatamente declara como sendo de sua propriedade, todavia, todas as leis, novas e antigas, não conseguem nem assegurar e preservar a sua posse e nem estabelecer claramente uma distinção entre o que é de um e o que pertence a outro”
(…)
“Assim sendo, estou plenamente convencido de que, a menos que a propriedade privada seja completamente abolida, não é possível haver distribuição justa de bens e nem a humanidade pode ser governada adequadamente. Se a propriedade privada permanecer, a grande e melhor parte da humanidade continuará oprimida por um fardo pesado e inevitável de angústia e sofrimento.”
Utopia também tem seus vícios. Talvez o leitor do século XVI não notasse, mas eles gritam ao do século XXI. Apesar de não haver propriedade como entendemos, existe escravidão (?), destinada a infratores. É uma penitencia necessária, explica Rafael, porque a sociedade precisa de alguma regulação. Então, sim, existe coerção e existe hierarquia. Há um governo. Mas ainda assim, é a organização mais horizontal que poderia ser imaginada naquela época, na transição entre a idade média e a idade moderna. Um período que não é famoso por sua democracia e menos ainda por relações igualitárias.
Utopia é uma democracia representativa. As famílias elegem representantes próximos, e estes elegem líderes, que elegem o príncipe, entre candidatos apontados pelo povo. Quanto aos ofícios, existem pessoas apontadas para garantir que todos se mantenham ocupados, de acordo com suas possibilidades mas também aptidões. Agricultura é um conhecimento básico é todo utopiano é treinado no plantio e na colheita.
O país é um lugar de abundância, uma nação rica, que acumulou ouro e prata o suficiente para que o valor destes metais pudesse ser subvertido. Aliás, esta é a estratégia de Utopia para lidar com a ganancia das pessoas: banalizar o valor dos bens materiais. Usa-se o ouro para fazer objetos como as algemas dos escravizados e os urinóis, numa tentativa de inverter a importância que a sociedade dá a certos bens.
Mas provavelmente o maior feito deste livro foi a consolidação de um conceito no imaginário da civilização. Virou um adjetivo: utópico, usado para se referir a ideias perfeitas, apesar de impossíveis. A etimologia da palavra reforça isso: significa literalmente lugar nenhum, algo que não existe.
Acho interessante também que utopia tenha se tornado uma ideia associada ao futuro. No livro é uma ilha distante, mas existente no presente. E por falar em futuro, eu quase consegui evitar, mas as coisas ficaram armadas demais para deixar passar. Vou ter que fazer meus parágrafos protocolares sobre Star Trek.
Se alguém lembrar de outro produto audiovisual, ficção científica futurista, em que a humanidade tenha atingido uma utopia, por favor me mande, tenho bastante interesse. Eu só conheço Star Trek. A utopia está tão consolidada que não se fala sobre ela. A humanidade está interessada em novos mundos, novas vidas, novas civilizações, em audaciosamente ir aonde ninguém jamais esteve, não em lidar com fome, guerras e boletos.
Aqui é sutil, mas a utopia também está ligada a propriedade e poder. Como eles dominam uma tecnologia que converte energia em matéria — e eles não têm carência de energia — não existe qualquer escassez material. Diante da abundância, a propriedade em si perde o sentido. Não existe dinheiro, tido como um conceito primitivo neste universo. As pessoas não trabalham porque são obrigadas ou porque precisam, mas porque acham interessante o aprimoramento pessoal ou mesmo as experiências.
A lógica é militarizada e hierarquizada — ainda é um produto originalmente dos anos 1960 — mas a série é insistente em retratar como soluções para os mais variados problemas podem vir das mais variadas fontes, ignorando títulos e patentes.
Não é difícil, para mim, imaginar entre o problema que Ismael expôs, a organização social dos Despossuídos, as inspirações de Utopia e as projeções de Star Trek, um caminho para a nossa civilização.
Um caminho que passa, inevitavelmente, pelo fim da propriedade.
A frase é de efeito, mas ela é pouco específica. Não nos imagino nos livrando das nossas posses. A roupa que eu estou usando precisa ser minha ao menos enquanto eu a estiver usando, assim como a cama enquanto eu estiver dormindo. Mas será que essas coisas ainda precisariam ser minhas quando eu estivesse longe delas?
Então a frase mais apropriada seria “um caminho que passa, inevitavelmente, pelo fim daquilo que entendemos como propriedade”.
E como chegaremos ao fim da propriedade? Essa é a maior das questões. Existe a possibilidade de uma revolução avassaladora. É, talvez, a possibilidade mais evidente, já que nada menos que avassalador seria necessário para acabar com uma lógica praticamente hegemônica de milhares de anos.
Esta revolução poderia ser ativa, com multidões revoltadas pegando em armas e impondo o fim da lógica vigente. Poderia ser também — e neste caso talvez já até esteja acontecendo — mais passiva. A lógica da propriedade deságua na lógica do acúmulo, que fortalece as desigualdades. Quem tem menos vai tendo cada vez menos e quem tem mais vai tendo cada vez mais, como bem apontaram as pensadoras As Meninas nos anos noventa. E isso, no limite, é insustentável. Neste caso a lógica da propriedade implodiria quase sozinha, levando bilhões de pessoas com ela.
E, ainda mais provável, a revolução poderia ser uma mistura destas duas possibilidades, com um revoltas violentas após situações absurdas de desigualdade.
Mas, como acredito já ter estabelecido, propriedade e coerção são conceitos irmãos, filhos do poder. Sou cético a possibilidades que sugiram o fim da propriedade através da coerção, que defendam uma manutenção da lógica de poder. Não que eu não acredite que revoltas ou colapsos possam acontecer, acho inclusive que já estão acontecendo. Desconfio é da sua eficiência. Desconfio que não quebraremos, de fato, este tabu, se não quebrarmos o tabu da necessidade de poder. Podemos brigar e até vencer a briga pelo fim da propriedade, mas então não nos livraríamos da própria ideia de vencer. E continuaríamos buscando poder.
Vejo outra possibilidade, mais utópica. Vai na linha do que aconteceu em Star Trek e passa pela tecnologia.
O argumento maior, na língua e na mente dos pegadores convictos (eu sou pegador, mas não convicto) passa pela escassez. Os territórios e os recursos são limitados, argumentam, por isso o conceito de poder é inerente à nossa existência. Alguém pode, e alguém não pode fazer uso dos territórios e recursos, e isto seria natural.
Só que, novamente, este argumento ignora que muitas pessoas viveram e têm vivido fora dessas limitações. E a grande diferença parece passar justamente pela escassez que os pegadores consideram inevitável.
Os largadores citados por Ismael estão acostumados a abundância. Eles até convivem com alguma falta, mas não o suficiente para formar cada aspecto de sua sociedade. Se o cara da minha tribo comeu a manga da árvore mais próxima, é só eu ir ali na outra. E se não tiver em nenhuma perto, é só andar um pouco mais. E se eu não achar em nenhum lugar… É só uma manga, eu comi tantas, eventualmente haverá outras. Quando a escassez sai da equação a busca pelo poder se enfraquece.
Mas no caso da sociedade contemporânea a escassez já não está mais associada apenas aos recursos naturais. Iphones são escassos. Videogames, carros, azeite, queijo coalho temperado com orégano… Nosso desejo por ter já está enraizado na forma como vivemos, o que gera uma demanda, e somos cativos da lógica de oferta e demanda.
Mas e se nada disso fosse escasso? Em Star Trek qualquer bem material pode ser gerado instantâneamente e de graça, porque não existe gargalo para fazer uso de um replicador de matéria. Existem muitos, a energia é abundante, e todos podem fazer uso deles como bem entenderem. Até para fazer comida. Nem o território é escasso. Primeiro porque eles têm teletransporte, o que torna as distâncias irrelevantes, segundo porque as pessoas podem morar fora do planeta terra.
Entendo que tudo isso seja fantástico demais (ainda que não pra mim). Mas acho perfeitamente possível algo nesse caminho, ainda que leve tempo.
Aqui, Thomas Malthus olha para cima e bufa em seu túmulo. Vou falar sobre ele rapidamente: um pensador do início do século XIX, crítico do utopismo (o que já me deixa de má vontade), que defendia que enquanto as populações cresciam em progressão geométrica, a disponibilidade de recursos só podia crescer em progressão aritmética. Ou seja, a gente se reproduz MUITO mais rápido do que é capaz de produzir comida. Tão mais rápido, que a distância entre um e outro só aumentaria com o tempo. Essa percepção é fundamental para o entendimento de que a escassez é inevitável.
É um ponto válido. Na época dele havia um bilhão de pessoas no mundo. Mil anos antes eram duzentos milhões. Duzentos anos depois dele são oito bilhões. Crescemos em duzentos anos oito vezes mais do que crescemos nos primeiros trezentos mil anos. Isso é vertiginoso e sufocante.
Só que se nossa reprodução é acelerada, a evolução da tecnologia é ainda mais, assim como a nossa compreensão da realidade. Aprendemos, nos últimos cinquenta anos, muito mais sobre as consequências das nossas ações do que aprendemos nos outros trezentos mil. Não estamos condenados a continuar nos reproduzindo neste ritmo porque podemos escolher não fazê-lo. Já existe um tanto de países com a população encolhendo, e a perspectiva história de uma população mundial que só cresce pode estar chegando ao fim.
Paralelamente a isso, nunca fomos tão eficientes em resolver problemas. Me parece lógico: com mais pessoas e maior conexão entre elas, mais possibilidades são contempladas e mais soluções são encontradas. Se a organização destas ideias é um gargalo, agora temos as inteligências artificiais, que trabalham sem descanso e em uma velocidade ainda maior.
Sei que falar em IAs é gatilho, e desencadeia toda uma série de outras polêmicas, mas peço que me induljam (ta aí uma palavra que escrevi pela primeira vez na vida) e acompanhem as diretrizes para a minha possibilidade de utopia. Lembrando que este é o cenário “se tudo der certo”, sei que tem muito o que dar errado, e que é mais provável que as coisas só piorem. Além disso estou projetando um futuro distante, já disse que não tenho esperança para meus filhos e netos.
Mas imagino um futuro no qual, com o auxílio das máquinas, otimizamos completamente o manejo e a produção de recursos. Se um equipamento usa um metal raro na sua composição, por exemplo, conseguimos contornar o problema, substituindo por algo ainda inusitado, renovável ou abundante, a ser descoberto através da nossa crescente competência em analisar grandes quantidades de dados. Focamos nos entraves da escassez, e resolvemos cada um.
As necessidades materiais mais urgentes, assim, são minimamente supridas.
Então, como os utopianos, conseguimos nos dedicar ao nosso esclarecimento. O ser humano médio seria plenamente consciente dos impactos de suas escolhas, para si e para o mundo. Isso porque além de ele ter mais tempo para pensar, a compreensão da realidade seria maior, existem mais registros, mais pessoas — e máquinas — analizando os registros. Por conta disso, nos reproduziaríamos menos, a população se manteria estável ou em níveis compatíveis com nossas possibilidades. Um declínio populacional não seria um problema se a força massiva de trabalho humano tivesse se tornado desnecessária.
Nesta utopia, a propriedade iria perdendo a razão de ser. Com abundância, o trabalho que se tem para manter esta lógica simplesmente não valeria a pena.
Eu sei que o buraco é mais embaixo. Sei que, sem coerção, os mais poderosos de hoje precisariam “permitir” que isto acontecesse. Mas, como a Ursula mostra em Os Despossuídos, acredito muito na força da sanção social. Alías, considero a única força coercitiva humana inevitável e realmente eficiente a longo prazo. Minha esperança é que os detentores do poder evoluam sua compreensão do mundo junto com o resto da humanidade e entendam a cagada da desigualdade por si mesmos. Mas se eles falharem, ainda tenho esperança que o bom senso da maioria esmagadora das pessoas vá gerando constrangimentos.
Minha utopia é ingênua, não posso negar. Mas é tão difícil assim de ver lampejos do que eu falei ainda hoje? Não é comum ouvir sobre como as novas gerações estão priorizando experiências sobre coisas? Alugar é o novo ter — e sim, eu sei que por um lado isso é um problema, mas também não pode revelar algo sobre uma mudança de mentalidade?
E as sanções sociais, já não estão acontecendo? Empresas preocupadas com o meio ambiente o são porque acreditam na importância disso ou porque estão preocupadas com a sua imagem? Ainda que nunca se tenha dito tanta merda com convicção, não existe uma organização inédita das pessoas para expor o problema das merdas faladas? E isso não teve impacto na nossa produção cultural nos últimos anos? As novas gerações já não vem, por exemplo, com uma compreensão diferente do que as anteriores sobre sexualidade?
Minha utopia é ingênua. Mas todas são. Precisam ser.
De toda forma, quebrar um tabu não é mudar toda uma configuração prática. Se tabu é algo sobre o que não se fala, ou algo sobre o que não se pensa, quebrar um tabu é apenas falar sobre ele. Pensar sobre ele.
Nossa noção de propriedade é artificial e precisa ser superada.
Pensar sobre isso já pode ser revolucionário.
M I C R O C O N T O
O aplicativo TRACE foi vendido esta semana para a Coop por cento e doze coins, o suficiente para que os bisnetos de Taliu Naraka e Zeina Mounago não precisem trabalhar. Tudo começou, contam, em um jogo universitário de cybertênis onde se encontraram pela primeira vez. Estudavam na mesma universidade, ela na faculdade de Relações Artificiais e ele cursando Narrativologia. Zeina pegou uma bola, e Taliu comentou sobre como seria interessante saber sobre a história do objeto. Quantas pessoas haviam usado aquela bola antes? Onde ela fora fabricada? Zeina então teria dito que isso era perfeitamente factível. A partir daí, ao longo de poucos encontros, desenvolveram uma ferramenta capaz de identificar objetos em sua individualidade e contar sua história. Basta apontar para algo e o aplicativo varre todo o ciberespaço e traça uma linha do tempo com todas as imagens em que o objeto já apareceu, com localização e data. A partir disso, a ferramenta escreve uma narrativa instigante para contar a história da coisa, gerando uma aura única. O TRACE ganhou prêmios importantes como o Concon, por sua lógica inovadora, que estimula o consumo de objetos usados. Taliu por exemplo usa uma pulseira que, segundo o TRACE, já foi o presente de uma pobre pescadora para seu amado, um executivo do ramo dos transportes. Zeina, por outro lado, ainda faz questão de imprimir pessoalmente todas as suas roupas do zero. Mas depois de usar conta que as larga “por aí”. Diz que prefere “começar histórias”.
Gostei muito ! Ufa ! Esse deu trabalho para fazer e para ler ! Mas valeu a pena. Parabéns ! E muito grata