Meu gênero favorito é a ficção especulativa. É um nome diplomático e inclusivo para tratar de histórias que contam com elementos extraordinários, fantásticos ou sobrenaturais. Vejo como uma maneira de falar de ficção científica e fantasia com um só termo, o que é conveniente para a maior parte dos fãs, que costumam ser os mesmos.
Ainda hoje é visto como um nicho. Existem grandes obras que furam a bolha, como O Senhor dos Anéis ou 1984 na literatura, e as maiores bilheterias cinematográficas dos últimos anos quase todas (se não todas) se enquadram perfeitamente na concepção do gênero. Mas ainda assim, quantos ganharam o Oscar? Qual autor de ficção científica ou fantasia já ganhou o Nobel de literatura? Herman Hesse, Garcia Marques e Saramago até se enquadram na categoria, mas quantos outros não foram ignorados?
Não quero ser reclamão. Só estou tentando, da maneira mais breve possível, criar um contexto para afirmar: a ficção especulativa, apesar de ser reconhecida como diversão, tem dificuldade em ser levada a sério. Os quadrinhos, ambiente fértil para o gênero, precisaram de décadas para se libertar do estigma de coisa de criança, isso se é que se libertaram totalmente. O cinema só foi levar ficção científica realmente a sério em 1968, com 2001 - Uma odisseia no espaço. Até então, os filmes B eram feitos com sobras de cenas e cenários de outros filmes. Na literatura, o gênero precisou de seus prêmios próprios, como o Hugo e o Nébula, justamente por ter seus autores sempre preteridos nos ambientes tradicionais.
Nada, a não ser preconceito, me faz entender a pouca projeção de autoras como Ursula K. Le Guin e Octavia Butler.
Ao longo da vida, eu mesmo fui aceitando que ficção especulativa não é para todos. Contra as minhas vontades mais nobres, me vi traçando uma linha que divide a humanidade entre aqueles que têm e aqueles que não têm disposição para o gênero. Nos meus momentos de maior mesquinhez tendo a achar que os últimos não gostam de imaginação. Torço o nariz para eles, subverto a expectativa e inicial e considero, eles sim, crianças. A compreensão de certas alegorias requer alguma maturidade.
Esta parte de mim é hiperbólica e um pouco agressiva e não deve ser levada muito a sério.
Mas sou um apaixonado pelo gênero. Consumo avidamente o que encontro pela frente, a ponto de achar a oferta escassa. Sofro por sentir que tantas pessoas preferem passar longe da ficção especulativa. Como paixão frequentemente anda junto com teimosia, teimo que essas histórias são, sim, para todos. Tenho na ponta da língua uma defesa ensaiada que tento conjurar com bastante critério, embora quando o faça veja nos olhos dos interlocutores o reflexo do meu próprio olhar, já sem lucidez, e sinta estar soando como um fanático religioso desesperado para converter infiéis.
Entre os que não gostam de ficção científica, ouço muito o argumento de que preferem o que é, ou parece, real. Conheço pessoas que só leem biografias, outras que são grandes fãs de reportagens e documentários, outros que até preferem ficção, mas o mais mundana possível: costumes, históricos, dramas humanos do mundo real.
Claro que tudo isso é valiosíssimo, e tenho certeza que se não me empolgo tanto com abordagens mais tangíveis, isso revela mais sobre minha inaptidão para com o mundo real. No entanto, minha briga é para dizer que a ficção especulativa também tem mérito. Pode oferecer, inclusive, o mesmo tipo de recompensa que um bom romance existencial do século XX.
O argumento sobre a escolha pelo real costuma passar pela ideia de identificação. O real seria mais relacionável, é mais fácil se imaginar numa situação mais próxima daquela que já se vive, ou mesmo imaginar que se conheça quem está passando por aquilo. Por este raciocínio, o absurdo distancia. As situações fantásticas podem tirar a pessoa da história, podem lembrar a ela que aquilo não aconteceu, até porque de fato nem poderia ter acontecido.
Há sentido nessa análise, não há como negar. A ficção especulativa demanda mesmo um envolvimento maior, uma disposição maior do leitor, ou espectador, de sustentar o pacto tácito de suspensão da descrença que todos precisamos fazer ao consumir ficção. A ficção, por definição, é uma mentira. É necessário que se aceite essa mentira e se permita usar a mente para a reconhecer como uma verdade. A dicotomia fica, então, entre mentira e verdade. Uma reportagem ou um documentário, talvez até um filme “baseado em fatos reais”, estariam mais próximos da verdade.
No entanto, prometo que as maiores verdades que encontrei, encontrei na ficção. Especialmente na especulativa.
Um dos registros mais antigos sobre as características da ficção está na Poética de Aristóteles. Ele compara poesia e história, ou ficção (tudo ficcional era em versos) e não-ficção. A diferença, segundo ele, para além da forma, estaria na abrangência. O fato é específico. Se existe um sujeito chamado Carlos, que atravessou um rio real chamado Pinheiros, seria sempre sobre o Carlos atravessando o rio Pinheiros (claro que nem o Carlos nem o rio seriam os mesmos em uma segunda travessia, mas isso é assunto pra todo um outro ensaio). No entanto, se o Carlos não existisse e isso nunca houvesse acontecido no mundo real, deixaria de ser sobre o fato específico. Agora seria sobre atravessar um rio, em determinada circunstância. Carlos não seria mais um homem específico, passaria a ser qualquer ser humano atravessando qualquer rio.
Chapeuzinho vermelho não seria sobre como aquela menina específica deveria ter evitado o caminho alternativo daquela floresta específica. Seria sobre como todas as meninas devem ouvir suas mães e não inventar moda. Édipo Rei, não seria um relato sobre um caso curioso de um Rei que matou o próprio pai e casou com a mãe. Seria sobre amadurecimento, sobre o momento na vida em que percebemos que nossos pais não são seres divinos com monopólio do que é certo. E Freud desenvolveu toda uma ciência em volta de sobre o que mais seria Édipo Rei.
Assim, algo imaginário, uma mentira tolerada, poderia se relacionar com mais pessoas em mais situações. É, sim, uma relação que depende da imaginação de quem ouve a história, talvez tanto quanto de quem a criou. É necessário entender o que a situação fictícia causa, encontrar paralelos com a própria vida. Mas também é algo que pode acontecer até em um nível subconsciente.
Estas ideias se referem à ficção, pura e simples, mas minha defesa é sobre ficção especulativa. Pois bem, seguindo essa linha, quanto mais distante da realidade for a peça de ficção, mais primárias se tornam as semelhanças com o mundo real e ordinário. Quanto mais diferente e inusitado for o universo contido na obra, mais se pode chegar na essência de questões inerentes à nossa condição e às nossas vidas.
Se ao invés de Carlos atravessando o rio Pinheiros, a história fosse sobre Calzunix atravessando a barreira Eletromagnética dos Robôs Desmembrados, ficariam mais evidentes os temas centrais. Neste caso as barreiras nos nossos caminhos, e porque atravessá-las.
Um exemplo histórico. No auge das lutas pelos movimentos civis nos Estados Unidos dos anos sessenta, estava no ar uma série de ficção científica chamada Star Trek. Era sobre uma nave espacial e suas aventuras por novos e estranhos mundos. Em certo episódio, a tripulação se depara com uma civilização alienígena que está em guerra civil, já há gerações. A guerra é racial. Eventualmente eles conseguem conversar com nativos dos dois lados do conflito. Toda a espécie do planeta (os dois lados) tem metade do rosto preta e metade do rosto branca. Não preto e branco como as raças humanas, preto e branco como tinta preta e tinta branca mesmo. Então o capitão da nave pergunta qual a razão da guerra, já que eles são todos iguais. A resposta que ele tem de um dos habitantes locais é “sim, mas o lado branco deles é o esquerdo, o nosso é o direito”.
Através do absurdo, do ridículo — vale dizer que a maquiagem é inignorável e é tudo bem teatral — a série expõe a raiz de um problema do momento, que fazia parte das vidas das pessoas. O expectador assiste e, assim como o capitão, acha aquele preconceito totalmente circunstancial e sem sentido. E, se aquele preconceito é absurdo, será que essencialmente não são todos?
Além disso, quanto mais alegórica é a história que se conta, mais necessário é o engajamento do público se a intenção é essa busca por sentido. Vejo isso como mais um ponto a favor. Quanto mais esforço é demandado para chegar a esse lugar comum entre a vida real e a obra, mais sólido se torna esse aprendizado, mais internalizada a lição. Uma vez que eu entendi o que é essencial na história do Calzunix atravessando a barreira Eletromagnética dos Robôs Desmembrados, nunca mais conseguirei ver pessoas seguindo seus variados caminhos e atravessando seus variados obstáculos da mesma forma.
Ou seja, só vantagens.
Eu sou parcial nesta questão. Sou militante de ficção científica e temo estar exagerando. É claro que tudo o que eu falei sobre as boas qualidades da ficção especulativa pode se aplicar a qualquer tipo de texto ou obra de arte, inclusive de não ficção. Um bom documentário também procura os temas essenciais, também tenta se conectar com o expectador, também toca no fundo do peito. Mas vejo, ainda hoje, a necessidade de sair em defesa da ficção especulativa. Porque, ainda hoje, vejo pessoas virando os olhos quando ouvem falar de tramas fantásticas, futuristas ou espaciais.
No fundo no fundo, o que eu queria mesmo era ter mais gente para falar sobre o futuro, o espaço, a tecnologia, o que é a condição humana e, principalmente, Star Trek.
Em tempo: morreu na noite de ontem, aos 89 anos, Nichelle Nichols, a Uhura de Star Trek. É a mulher que aparece no fundo da fotografia dos alienígenas com rosto dividido. Seu legado é imensurável. Um exemplo tangível de como a ficção (especulativa) transforma a realidade.
militante de ficção científica <3 adorei o texto e me identifiquei demais!
mano, achei mto interessante sua proposta de reflexão, já tinha pensado nessa divisão, mas não sob essa óptica. me explico: nos meus estudos psicológicos me deparei com uma proposta do Jung de entender a cognição humana através de algumas diferenças que existem no funcionamento de nossas psiques. caso essa discussão ainda faça sentido pra ti 2 anos depois de ter postado, recomendo que procure o que o Jung chamou de "intuição" e de "sensação", o que ao meu ver seria justamente a divisão que vc faz entre quem gosta do fictício (intuitivos) e do "real" (sensitivo - aqui no sentido de sensorial).